terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Ir aos livros ou não ir aos livros? Eis a questão.

Quando sonhava ser mãe biológica tinha como plano não ler livros de puericultura, pedagogia e o diabo a sete. Embora reconheça que sou profissionalmente formatada para a pedagogia, sempre achei que a educação deve ser uma coisa natural, algo que acontece e não precisa de teorias. Esta convicção nunca se baseou numa negação dos saberes da pedagogia, mas antes baseava-se numa postura que assume que, com ou sem livros, serão sempre cometidos erros. Sabemos que todos temos convicções e certezas que caem que nem castelos de cartas quando chegamos à parentalidade. É óbvio que eu, ainda sem ter chegado lá, achava que as minhas são inabaláveis e que não vou engolir as minhas palavras. Somos assim e algo me diz que é saudável – tanto o facto de termos convicções (para disfarçar dúvidas e incertezas) quanto a realidade de ter de as deitar pelo chão na hora certa (para reforçar convicções e certezas).

Portanto, eu dizia que quando sonhava ser mãe biológica tinha como plano não ler livros que me guiassem nesse caminho. Fiz o mesmo durante os tratamentos de fertilidade, quis saber apenas o essencial. Ainda não sei se esta postura é a mais saudável, mas suspeito que pelo menos é saudável porque se situa algures no meio-termo entre “esgotar a informação” e o “não querer saber”.

Agora com a adopção a coisa pia mais fininho. Ui. É um ver-se-te-avias de leituras. Leio de tudo, do bom e do mau. E vídeos! Há dias fui apanhar-me frente ao youtube a ver vídeos atrás de vídeos, sem qualquer tipo de lógica no clique seguinte. Já percebi que há conceitos que me são simpáticos como o therapeutic parenting e que há outros que considero puras aberrações como o attatchment therapy (brrr).
É um bocadinho cansativo querer “saber tudo”, mas não encontro outra forma de estar na adopção. Até começar a ler, não me era espontâneo nem automático compreender certos meandros do medo e da insegurança de uma criança adoptada, nem afianço que teria reacções pedagógicas como as recomendadas nestas situações. Pelo que só posso considerar que ler sobre o tema tem sido muito positivo para mim e, assim o espero, para o(s) meu(s) futuro(s) filho(s).

Uma das coisas que mais me faz sentir solidária com os pais adoptivos que tenho lido é mesmo isto: as escolhas conscientes nas reacções pedagógicas e o peso social que podem assumir. E é com isto que (mais) sinto que (mais) aprendo. Ou seja, há decisões que os pais adoptivos têm de tomar perante certas situações de conflito que por vezes são o oposto do preconizado (e aceite) socialmente, logo, muitas vezes criticado por família e amigos. Muitas vezes injustamente apelidado de paternalista e condescendente e os pais diminuídos a pais que permitem tudo só porque o filho é adoptado. E isto, curiosamente quando se trata do contrário: a reacção dos pais é muito reflectida e baseada no bem-estar do seu filho. 

Um exemplo: Suponhamos uma birra num lugar público.  Habitualmente, os pais biológicos sabem que os seus filhos sabem que o seu amor é incondicional e que os pais estarão ali para os proteger contra tudo e contra todos. Aquela coisa de que as crianças só têm coragem de dizer “não gosto de ti” às pessoas com quem estão emocionalmente seguras.
Portanto, durante a tal birra no lugar público, é mais ou menos consensual nos meios em que me movo o método “isso já te passa/ quem é este menino tão mal educado/ ficas aí? eu vou embora”.

O mesmo não acontece com as crianças adoptadas, e não estamos a falar apenas dos primeiros tempos “até à adaptação” (eu sei, são muitas aspas e parêntesis, tenham paciência). Do que tenho lido, quando sensíveis para certos processos das crianças, os pais adoptivos não reagem da forma descrita acima a uma birra dos filhos num lugar publico. Porquê? Porque geralmente os motivos por detrás da birra, embora em ambos seja basicamente a frustração, esta não tem origem nas mesmas causas e a forma como os pais reagem pode ajudar a superar esse momento ou a exacerbá-lo e até a introduzir novo um mau-estar na criança.

Continuando com o exemplo, quando uma criança adoptada faz uma birra a sua frustração pode estar minada com algo mais para além do que é natural nas limitações de se ser criança e não se poder fazer tudo o que se quereria fazer. Fazer uma birra pode não ter iniciado com esse objectivo mas pode muito bem ser uma forma de testar ali, no lugar público, o quão empenhados estão aqueles pais em serem seus pais. É agora, vou fazer uma birra tão má, mas tão má, que vais ver como sou horrível e vais ver se não me deixas aqui, vou provar como toda a gente, mais cedo ou mais tarde, me abandonará. E podemos acrescentar mais umas conclusões a esta teoria como porque sou mau e ninguém gosta de mim, não mereço um pai e uma mãe, etc etc. Sim, assim tão básico e a direito. Penso que é claro que reagir como descrevi acima com o método “isso já te passa/ quem é este menino tão mal educado/ ficas aí? eu vou embora” é completamente contraproducente do ponto de vista pedagógico numa situação destas. Porque se trata de uma emergência emocional. Porque, mais urgente do que ensinar boas maneiras, é urgente abraçar a criança e mostrar-lhe (se necessário dizer mesmo) que ninguém a vai deixar ali sozinha a chorar a sua frustração, as suas angústias, o seu medo de ser abandonado e de não merecer ser amado incondicionalmente, para além das boas e das más maneiras. Que, no fim do dia, volta para casa com o pai e a mãe.

~ ~ ~

E logo a mim havia de calhar ser mãe adoptiva. Eu, tão firme e hirta. Tão convicta da educação “rígida mas com amor” que fui dando aos sobrinhos. Só penso nos meus mais velhos que passaram tanto tempo comigo. Não digo que estivesse completamente errada, e é verdade que eles mostram muito amor por mim pelo que as memórias não devem ser más. Mas penso nisto que tentei explicar das reacções pedagógicas e chego à conclusão de que provavelmente ler não nos faz assim tão mal nem nos mina a naturalidade. Porque o que nos é natural é o amor e este não se aprende nos livros. E penso que o que se aprende nos livros é a travar e a modelar  as nossas reacções. Afinal, falamos de construções e essas estão lá, nos livros. E isso não me parece nada mal. Parar e respirar e, se necessário, contar até 10.

E depois, estas coisas não podem ser só aprendidas porque se leu num livro, têm de ser sentidas. Vou dar-vos um exemplo que vos pode parecer completamente parvo, mas não é. Eu sei que é bom porque não o li apenas, senti-o e foi por isso que o consegui concretizar.
O meu gato vai para 10 anos com 8kg de mimo. É um gatarrão filho único. Um doce que faz birras. De vez em quando passa-lhe pela cabeça que manda cá em casa e, de orelhas para trás, faz uns avanços de quem nos vai pôr na linha. Mas tem azar e costuma, er... costumava levar uma palmada que resolvia o assunto de uma (mão-)assentada só. Há tempos, estava eu a reflectir sobre esta coisa da história de alguns meninos adoptados e no quão assustador deve ser entrar na casa de estranhos para se tornar seu filho e eis que um pensamento leva a outro e me  veio à cabeça as palmadas que o Manjerico leva de vez em quando. Senti um calafrio ao imaginar um primeiro dia com uma provável birra do Manjerico a ser resolvida com uma palmada e a imagem com que a criança ficaria de nós: potenciais educadores pela palmada. Nem consigo descrever o quanto essa imagem me doeu. Falei com o Chaparro e resolvemos tentar mudar a nossa reacção pedagógica perante as birras do Manjerico. Adoptámos o método de lhe soprar no focinho quando o “não” não funciona, aprendemos esta com a Gi.
Começámo-nos a treinar para a não-palmada em Setembro e passados 2 meses e picos posso afiançar-vos que o sortudo do Manjerico deixou de levar palmadas e até faz menos birras (go figure!). Não digo que vá tentar aplicar teorias a torto e a direito, mas percebemos que esta era importante e sentimo-nos felizes e orgulhosos de ter concretizado isto.

O que eu quis dizer com este palavreado todo resume-se nisto que li há tempos: uma mãe a dizer que se tivesse tido os seus filhos adoptados antes dos seus filhos biológicos certamente que estes últimos teriam sido poupados a muitas palmadas. Capisce?

Resposta: Ir aos livros, aos amigos, aos blogs. Parar e respirar e, se necessário, contar até 10. No fim, confirmar com o nosso coração.










Cipreste

4 comentários:

Ana disse...

Em quase toda a gravidez tinha alergia aos livros :) Depois isso mudou, conforme me senti mais segura os livros passaram a interessar-me mais porque sentia que não me deixava absorver por eles. Então depois cheguei à conclusão que o problema não são as teorias nem os livros, mas o que fazemos com eles. Tenho um rascunho sobre esse assunto por acaso (sou uma desorganizada, um dia acabo). Acho que fazes muito bem. Não se aprende a amar nos livros, mas aprende-se a reconhecer mais facilmente alguns sinais. Não só deles, também nossos. Fala-se tanto em prevenção de saúde mental mas depois todos achamos que temos sido muito saudáveis nas gerações anteriores e que portanto basta seguir o instinto :P

Cipreste disse...

" Fala-se tanto em prevenção de saúde mental mas depois todos achamos que temos sido muito saudáveis nas gerações anteriores e que portanto basta seguir o instinto"

é exactamente isso, dito numa frase! :) "ah, e tal, eu tb levei palmadas e estou aqui" ;)

JoanaM disse...

Eu li imensos livros quando a minha filha mais velha nasceu. Adorava. Os livro faziam-me pensar, deram-me ideias e ajudavam-me nas alturas de crise. Com a adoção também tenho lido imenso.
Nunca usei a palmada. Escolhemos educar sem ela. É possível.

Cipreste disse...

Obrigada pelo reforço sobre a palmada :) tb continuamos a acreditar

p.s. o Chaparro diz que o Freixo teve de levar uma palmada na mão quando tinha cerca de 4 anos e chorou como se não houvesse amanhã... mas ficaram por ali