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sexta-feira, 14 de março de 2014

Uma espécie de carta aberta ao Chaparro

Que dias.
Dias cheios de tudo. Sinto que deixei de ter noção do tempo.

Ontem, no regresso de Lisboa, o Chaparro dizia-me que se sentia realizado, que tinha sensação de missão cumprida. Naquele momento, tudo se revolveu dentro de mim e fiquei sem voz por uns segundos. Queria dizer-lhe o mundo todo e não conseguia. Sentia as ideias na minha cabeça, mas não conseguia fazer delas um discurso. Após alguns segundos de silêncio consegui confessar-lhe pensamentos muito maus que tive há duas semanas. Já na altura eu sabia que eram pensamentos maus e que, ao confessá-los, iria levar com uma rodada de “sua parva!”. Por momentos, senti um poucochinho daquilo que penso devem sentir pessoas que ficam fisicamente dependentes de terceiros e resolvem acabar as suas relações amorosas para não “prenderem” a vida dos seus companheiros.

Por vezes, a carga de se viver com determinadas condições é tão desmedida que se perde o Norte e damos por nós a ter pensamentos que jamais pensámos vir a ter. Subitamente essa noção de se ser um peso na vida de alguém está dentro da nossa pele e, inibidos de qualquer clarividência, o que nos surge é a vontade de libertar o nosso objecto de amor de tal encargo.

E podem chamar-me parva à vontade, mas foi o que eu senti. Que viver a meu lado acarreta demasiada empreitada, que a vida poderia ser muito mais simples longe de mim. Que provoco instabilidade a qualquer um que se proponha viver os dias a meu lado. Que nunca se sabe com o que se pode contar, porque num dia estou activa e faço imensas coisas e até mobilizo gente para coisas giras mas no dia seguinte posso estar prostrada no sofá. Acreditem que cheguei a questionar-me se não seria bipolar. Eu sei que é uma leviandade imaginar psicopatologias, mas juro que o pensei.

As voltas que temos dado para construir uma família - consultas e tratamentos de fertilidade, as voltas e pesquisas e estudos para uma adopção consciente, são tudo manobras que tiram muito dos dias a outros tantos projectos em que estamos metidos, e que seriam suficientes por si só para preencher a vida. São coisas maravilhosas que nos realizam e chegam a muita gente, e não tem nada a ver com filhos nem família nem saúde. Mas deu-nos para desejar filhos, e ao Chaparro calhou uma mulher que não é super-fixe-e-bué-fértil e que ainda-por-cima anda sempre a queixar-se de dores-aqui-e-acolá.

E foi assim que, de baixa médica em casa, dei por mim a pensar que o Chaparro estaria a desperdiçar a sua vida e criatividade ao meu lado e que provavelmente estaria muito melhor sem mim. Porém não tive coragem de lho confessar na altura, porque ele nunca se zangou comigo nestes quase 8 anos em que estamos juntos, mas não imagino que fosse ser muito agradável vê-lo zangado. E uma pessoa minimamente consciente quando tem pensamentos destes sabe que são proibidos e sabe dos argumentos que possam ser arremessados contra os mesmos. Pelo que me sobrou uma tarde de auto-comiseração em modo Madalena arrependida, no sofá, com (muitos) lenços de papel.

Portanto, ontem fiquei sem voz quando o Chaparro me disse sentir-se muito conciliado com a sua vida. Quer dizer… ele passou as últimas semanas a alimentar-me e a cuidar da casa e a assumir o meu papel nos nossos outros compromissos, faltou ao trabalho e foi para Lisboa acompanhar-me na marcha com o telefone a tocar cons-tan-te-men-te, rodear-se de mulheres como eu (não lhe bastasse uma!) e… e, nada! Sim! Faz todo o sentido, Chaparro! Sim, a nossa vida é completa mesmo com todos estes problemas e preocupações.

Podia ser sem dor, pois muito bem, mas é a nossa vida. E é uma vida partilhada. Linda.

Nunca (nunca) me mostraste a mínima dúvida ou impaciência sobre os meus relatos de dor. Saberás o quão gratificante é ter alguém que acredita em nós e que não nos apelida de histéricas inconformadas na sua condição de mulher? Oh céus. És uma dádiva tão maravilhosa. Dentre tantas coisas magníficas que és, és a negação da solidão.

E deves sentir orgulho em quem és.

Viste bem a quantidade de homens que (não) conseguiram estar lá ontem? Não é fácil (nem barato) faltar ao trabalho assim a meio da semana. Mas tu lá conseguiste estar ao meu lado. E entregaste panfletos pelas ruas de Lisboa a dezenas de pessoas. Chegaste-te às pessoas para as sensibilizar para uma doença comum mas incapacitante e negligenciada. De certeza que fizeste a diferença na vida de muitas pessoas ao apresentar-lhes a palavra endometriose.

Fazes a diferença bonita, todos os dias, na minha vida.
Perdoa-me o tom dramático, mas tenho de te dizer que se morresse hoje iria feliz e realizada.

Bem-dito sejas, tu, Chaparro, meu amor tão grande.

do filme Up (2009)

Cipreste