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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

ENDOMETRIOSE ~ Marcha Mundial

Tenho-me apercebido de uma coisa nova em mim, uma viragem na forma como lido ultimamente com as coisas: uma vez resolvida determinada questão, saio dela, faço quase como que um abandono.

Vai fazer dois anos que fui histerectomizada (com anexectomia bilateral), que vivo sem dores, que disse adeus à endometriose. Desde então, quase que abandonei a luta em grupo, o apoio, a entre-ajuda. Eu não era assim. Depois vieram os meninos e eu pensava que andava arredada do grupo apenas por causa dos meninos.

A semana passada comecei a reflectir sobre a minha cada vez maior resistência e consequente incapacidade de lidar com uma situação com a qual sou confrontada diariamente e me obriga a fazer das tripas coração porque me traz sempre com a lembrança do meu pai.

E eis que... Eureka! 

Percebi o que se passava.

Custou-me a chegar lá porque se trata de uma viragem de tipo 180º.
Eu era aquela que enfrentava todos os touros de frente, procurava pegá-los pelos cornos e não largava até os deitar ao chão. E ficava ali a escarafunchar.
Mas uma pessoa muda. Pelo cansaço, uma pessoa também muda.
Por exemplo, eu via os maiores dramas do cinema e saía ilesa. Deixei de o conseguir fazer. Escolho muito bem o que vejo porque os efeitos secundários ficam muito localizados, ficam no lugar da angústia. E eu deixei de ter a mesma resistência à angústia. O que me traz em gestão controlada da mesma.

As minhas avós chamavam à coragem para enfrentar os touros de frente de “ter estômago”. Podemos dizer que as pessoas se vão dividindo entre as que têm estômago e as que não têm estômago.
Eu fui sempre uma gaija com muito estômago. Até profissionalmente fui sempre escolhendo as “piores” áreas de trabalho no que concerne sofrimento.

Mas estou cansada. O meu coração pediu-me tréguas.
Lembrei-me agora desta passagem, rápida e aflita, d’O Fugitivo de Sérgio Godinho:
É impossível
não é possível
correr tanto
e pensar tão
lucidamente
o coração
não aguenta
a cabeça também não
porque tenta
ultrapassar os seus limites?  
(oiçam, a sério, é boa demais esta obra)

É isto. Por agora, dei os meus 5cents para determinados temas. Em muitos momentos, ultrapassei os meus limites. Foram muitos eventos de vida traumatizantes em tão poucos anos. Preciso descansar, preciso de gerir a minha energia.

Sinto forças para estar no tema da adopção, porque ainda tem muita água para passar por debaixo da ponte e sinto muito estômago para a fazer escoar.

Sou solidária com todos os que estão nesta luta da endometriose, na luta contra cada um dos sofrimentos, mas o meu estômago não aguenta estar activa nesse lugar. Concerteza perco muitos momentos de comunhão. Poderia participar com ideias, com trabalho de facto, podia ajudar, mas não consigo.  Há umas semanas, aproveitei uma oportunidade, um contacto, para passar a mensagem junto de uma pessoa "conhecida" e fi-lo, farei sempre este tipo de abordagens, mas acho que não consigo mais por agora. Importa assumir isto, acabar com o equívoco (meu e dos outros) sobre expectativas da minha eventual participação. Neste momento, não consigo. Um dia destes, quem sabe possa voltar ao grupo de apoio.


Assim, fico-me pela adopção, onde há tanto para pensarmos e ver se fazemos algo mais concreto (na informação e apoio, por exemplo) nesta área (não sou só eu que sinto falta, pois não?).

Resta-me agradecer a quem faz da endometriose a sua causa, uma parte dos seus dias, e ajudar na sua divulgação.


Copiei integralmente a seguinte mensagem do site do site da Associação Portuguesa de Apoios às Mulheres com Endometriose:
No Sábado, dia 12 de Março de 2016, realizar-se-á, uma vez mais, uma marcha que pretende ter presente o maior número de pessoas possível, com o intuito de divulgar esta doença, que afecta tantas mulheres, mas que é ainda muito desconhecida e por isso mesmo, o seu diagnóstico é bastante tardio. Este ano o dia da Marcha não coincide em todos os países tendo sido dada a cada um a liberdade para escolher o dia que fosse mais conveniente para o seu país!
Em 2014, a nossa primeira marcha, foi um verdadeiro sucesso, contando com cerca de 200 pessoas. O ano passado ultrapassámos as 300 pessoas sendo um dos países em todo o mundo com maior adesão. Este ano queremos mais, muito mais!
Para se manterem a par de todos os preparativos para este grande evento, que este ano se realizará na cidade de Lisboa, por favor juntem-se à página do evento no facebook ou mantenham-se atentos ao nosso site!
Ajudem-nos na divulgação, ajudem-nos a ajudar. Juntem-se a nós neste dia tão importante que fará a diferença para muitas mulheres que por todo o mundo sofrem em silêncio sem um diagnóstico.
A participação no evento é gratuita mas para receber um kit de participação necessita de estar inscrito! Por favor façam as vossas INSCRIÇÕES AQUI

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

mágoas


Já ultrapassei muitas das mágoas dos últimos anos. 

Há uma que é um pau-de-dois-bicos: a minha esterilidade.

Assim mesmo, com o nome à antiga. Fui estéril. Sou um campo estéril. 
O meu ventre foi estéril, não me serviu de nada, só me serviu para sofrer física e psicologicamente.

Nem sequer o parirás com dor me calhou.

O tempo passou. Tornei-me mãe. O meu coração tem filhos. E deixei de ter as dores físicas.

Sinto agora serenidade na forma como convivo com a infertilidade e o fim dessa história com a histerectomia, mas não sinto serenidade quanto ao facto de não ter sido eu a gerar, carregar, parir e amamentar os meus filhos. 
Estes filhos. 
Os meus filhos.
Magoa-me não ter sido eu. 
Se são meus - que são, não me faz sentido não ter sido eu a gerar, carregar, parir e amamentá-los. 
É como um buraco na realidade.


Ainda não consegui solucionar isto nem sei se é um desgosto que alguma vez venha a estar arrumado e num lugar de convivência sã com os factos.

Não são só os meus filhos que têm mágoa de não ter fotografias suas de quando eram bebés, eu também tenho - especialmente de fotos destas: mãe e filho, após o nascimento.

Tenho mágoa de não poder dizer: fui eu que fiz os meus filhos.
Estão a ver estes dois seres tão maravilhosos, alegres, compassivos, divertidos, disponíveis, bondosos, generosos? Queria gritar: FUI EU QUE OS FIZ.

Não o posso dizer, não fui eu, de facto, que os fiz.

Será egoísta? Não sei.
Sou consciente de que não tem nada a ver com querer anular a existência dos seus progenitores nas suas narrativas. Não tem a ver com as pessoas do passado, tem a ver comigo e com uma lacuna que existe na biologia dos meus sentimentos. 

Às vezes, penso que, no caso de algum dos meus filhos vir a ter os seus próprios filhos, essa imagem - deles com os seus filhos recém-nascidos (embora ambos digam que quererão adoptar, mas isso são outros quinhentos) - com os meus netos, possa vir a redimir a ausência da nossa. 
Não sei explicar onde fui buscar esta ideia, é até uma ideia que mais me parece ser uma fantasia. 
E agora estou a partilhar as minhas fantasias com pessoas que nunca vi? Oh céus, acho que ao contrário do que sempre pensei, afinal a escrita tornar-nos-á inconscientes? :)

Eu avisei, isto é um pau-de-dois-bicos, não há saída racional possível para este assunto, nem forma coesa de eu o conseguir explanar. 
Pelo menos por agora, porque é uma mágoa e as mágoas são tão só isso: dor de alma, desgosto. 
E a dor de alma não me deixa falar com nexo.

Talvez passe :)

Bom dia a todos,
Cipreste

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

ai ca nervos

Sigo esta mãe desde muito antes da chegada dos meninos. Uma vez inclusive traduzi um post seu.

E agora ela tinha de ir tocar no assunto. Argh.
Na consulta de pediatria do ano passado, o pediatra, nosso amigo, disse que a Magnólia iria menstruar nos 12 meses seguintes. Aliás, disse-o a ela. Apeteceu-me colar-lhe a boca com fita-cola. Raio de coisa para se dizer à miúda, pá! Não estou preparada para isto.

Ok, ok. Não penso assim. Ele fez bem, e fê-lo bem. Apenas, acontece que… eu não estou preparada para isto. Pronto, já o disse. Não sinto maturidade para enfrentar a menarca da minha filha. Grande palavrão, hein? Mas é assim que se chama a primeira menstruação de uma mulher. Acabei de escrever “mulher” pensando na minha filha. Oh-meu-deus.

Estão a ver o meu nível de preparação? Pois.

Mas não pensem que estou sozinha nesta falta de preparação. Há duas semanas, a Magnólia queixou-se de dores musculares no baixo-ventre durante dois dias. Ao segundo dia, já eles se tinham deitado e disse ao Chaparro que era capaz de estar aí a menarca dela e ele mandou-me calar. Assim mesmo: mandou-me calar(!). O Chaparro nunca me manda calar. Disse-me “Cala-te” (como é que é?!) “Isso dá-me vontade de chorar” (disse, já com os olhitos pequeninos e brilhantes) e rematou “ela é muito pequenina, é a minha menina”. Haha, ela já ultrapassou a minha mãe em altura, já cresceu uns 12 cm desde que está connosco. A nossa menina já não é pequenina.

Ai… é, é! Escrevo cá com cada parvoíce. Pfff.

Estão, finalmente, a ver o meu nível de não preparação para isto? Pois.

Ontem, numa conversa com ela, voltei a tocar no assunto “porque um dia destes vem-te o período” blábláblá.
Acho que ela encara isto com naturalidade, nem sequer é pessoa de stressar com as coisas. A mãe é que…

Faltam-me coisas.
Falta-me um livro: alguém aí desse lado me recomenda um livro sobre o assunto para lhe oferecer e ler com ela?
Já comprei duas bolsinhas para lhe dar nesse fatídico dia. Uma mais pequenina onde caiba um penso higiénico e um toalhete (daqueles embalados individualmente), para ter na sua malinha, e outra bolsinha um pouco maior para ter com reforços no cacifo da escola.
Mas não comprei pensos porque… ela é... muito pequenina, entendem?
Argh.
Quando me veio o período usei um penso da minha mãe e da minha irmã - não havia distinções lá em casa, estava tudo no mesmo armário da casa de banho, eram da marca Modess (alguém aí se lembra daqueles pensos-almofada?). Eu não tenho pensos porque, enfim, já sabem, sou histerectomizada (com anexectomia bilateral). Que pensos devo comprar? Os que eu usava são grandes demais para ela, para as suas cuequinhas… ela é muito pequenina, é... um bebé pequenino – o meu bebé pequenino, percebem?


Ajudem esta pobre mãe.
Ajudem-me, por favor.











Cipreste

post-scriptum  agora mais a sério, quem vos fala daqui é uma mãe que sofreu muito (e sofrer não é eufemismo) por causa do período e... e... e nada, pensar na possibilidade da minha filha sofrer como eu sofri, enfim, deixa-me aflita, fico como o Chaparro, só me dá vontade de chorar. E eu sei que ela não tem os meus genes, mas uma em cada cinco mulheres sofre de endometriose e... oh, céus.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Desafio

Há muito tempo que não vos venho falar da endometriose e convém ir fazendo-o amiúde porque é muito importante ir passando a palavra.
Fica a mensagem de ontem da Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose, no facebook:

Esta doença afeta mais de 176 milhões de mulheres em todo o mundo!
Já a conhecias? A divulgação é a nossa maior arma para um diagnóstico correcto e atempado podendo assim evitar a progressão da doença e sequelas irreversíveis!
Sabe mais em mulherendo.

A ideia é escrever a palavra Endometriose de forma original, fotografar e partilhar com a mensagem no vosso mural desafiando 4 amigos a fazê-lo também.

Têm 48h para cumprir este desafio (foi a contar desde ontem dia 15, eu é que me atrasei...), caso contrário deverão fazer um donativo de 1€ à MulherEndo - Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose!

Fica o meu contributo, em dia de aniversário da Mafalda ;)



Pf ajudem a passar a palavra e, se possível, uma pequena contribuição para a nossa associação que tanto nos tem ajudado - pelo menos, a mim, já fez uma enooorme diferença na vida

Obrigada e beijinhos,
Cipreste

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Regresso

Depois do corpo ferido, o corpo renovado. Com a alma esclarecida.

Sermos sujeitos a uma cirurgia que nos amputa pode, e deve, servir para uma renovação do nosso eu. Sou a mesma Cipreste, aquela que quer sempre ser melhor e tirar o melhor partido desta passagem pela vida. Sou uma Cipreste no caminho da conciliação.

Sofri dores desde que fui menstruada. Conheci os sentimentos da infertilidade, da impossibilidade de realizar um sonho. Conheci, por momentos, a felicidade da gravidez para, de seguida, saber o que é a perda da esperança. Outras perdas se apresentaram. Tudo isto pode ser vivido de forma dramática, mas chega o dia em que nos cabe a decisão: Carpe Diem.

Tive de me recolher junto dos que se juntaram a mim.
Nestas horas, o crivo acciona e mostra-nos o que é real - a amizade revela-se nas horas difíceis.

Nunca tinha sentido a real vulnerabilidade física, nem tinha percebido que seria necessário ter alguém a meu lado a cuidar de mim. Fiquei em espanto quando percebi que dependia do bem-querer dos que me querem bem. Tive quem cuidasse de mim. Tive o cuidado e o carinho incondicionais da minha sogra, da minha mãe e do meu pai. Ajudaram-me a tomar banho e a vestir, a sentar, deitar e levantar. Descascaram-me maçãs, trouxeram-me flores. Limparam-me lágrimas e perguntaram-me amiúde “tens dores?”. Mas eu não tinha. Eu não tive dores. E chorei menos de meia-dúzia de vezes. Na verdade, passei este tempo sempre bem disposta, nem sequer estive irritável ;) vá lá que tenha tido um ou dois momentos, mas, de resto, a disposição tem sido das melhores e a superar (para melhor) o que pensei que estes dias viessem a ser.

E há a novidade da vida devagar, não me lembro de ter vivido alguma vez dias assim, de forma lenta e calma. Quero mesmo tirar proveito desta aprendizagem.

~ ~ ~

E o meu amor...

O meu amor pôs-me creme nas cicatrizes e disse, pesaroso, “cortaram a minha menina”. Depois, conformou-se e explicou “mas tinha de ser, para não teres mais dores”.

~ ~ ~

A cirurgia foi mais extensa do que planeado. Era para ter sido por laparoscopia (os “furinhos”) e começou como tal – 3 furinhos, mas o meu útero era enorme e tiveram de reverter para laparotomia (incisão no abdómen). Tiraram tudo e “limparam” muitas aderências. Isto fez com que tudo demorasse mais tempo e exigisse outros cuidados. 29 agrafos, contou-me a médica quando acabou de os tirar.

Estive 3 semanas em modo zombie, não li, não me liguei à net, nem sequer liguei o computador. Raramente atendia chamadas.
Senti a fragilidade do corpo e do cérebro.
Fui retomando algumas actividades lentamente. Respondi a mensagens, comecei a atender os telefonemas todos e a ir à net.
Para a semana, regresso ao trabalho. Confesso que já tenho saudades, mas senti e percebi a importância de não me acelerar nesse retorno.

~ ~ ~

Entretanto, li mais um livro sobre adopção e estou a meio de outro. Tivemos a visita domiciliária e aguardamos o certificado.
Estamos em modo de espera.
E regresso aqui.

Hoje de manhã, em chat com uma amiga de infância, esta voltou a certificar-me “I know that you will be a good mom”. Respondi-lhe com a mensagem deste meme que vos deixo. Ela, que é mãe fantástica de duas crianças fantásticas, confirmou e rimos.

Olá :)

Cipreste

terça-feira, 13 de maio de 2014

Canções tristes

I
Maldades googlianas

Pronto, já tenho data de internamento para a cirurgia. No meu jeito de navegadora inveterada, só porque sim, digitei “hospital packing” no Google e cliquei em Images. (sim, tenho por hábito pesquisar em inglês caso não esteja à procura de receitas de caldo verde) Pesquisem e vejam que “bonitos” resultados obtêm.
Bah. Não precisava de ser lembrada que vou ser internada numa maternidade não para trazer um filho em braços para casa mas para deixar os órgãos que tantos dissabores que têm dado desde há 26 anos, sendo o maior, precisamente, o impeditivo de gerar vida.
Preciso mesmo de ir ali chorar um bocadinho.

Na 6ª-feira, comecei a escrever um texto sobre a necessidade de chorar, um texto que não acabei, nem chorei como era o meu plano. Ao invés disso, fui sair com o Chaparro e dois amigos e seguiu-se um fim-de-semana de jardinagem, algo que é sempre muito terapêutico para mim.
De seguida, fica o texto inacabado.

II
Tristesse

Trago uma tristeza dentro de mim desde pequenina. Embora não seja francófona, faz-me sentido chamar-lhe tristesse.

Se partirmos de uma postura psicanalista-de-trazer-por-casa, podemos procurar identificar algum acontecimento de vida que seja responsável por esta característica. Se partirmos de uma postura geneticista-de-trazer-por-casa, podemos cabalmente afirmar que haverá um gene qualquer que é responsável por esta característica.
Não sei o que poderá ser identificado na minha meninice como responsável por esta tristesse. Radicais das filosofias New Age provavelmente diriam que, para começar, eu nem sequer queria nascer, pois tive de ser “arrancada a ferros” e chorei que me desunhei até aos 9 meses levando a minha mãe à exaustão, pelo que a minha tristesse já virá de vidas anteriores.
Por outro lado, se falarmos na genética, e partindo do princípio de que não sou adoptada, nunca esquecerei o dia em que a minha mãe me disse que eu sou tal-qual o meu avô, pai dela, também conhecido como “avô dos pães”, por ser padeiro. Quando perguntei à minha mãe porque acha que sou parecida com o avô dos pães, ela simplesmente respondeu “Porque ele também tinha uma tristeza.”. Nunca mais falámos disto, como se proferir que o seu pai tinha uma tristeza fora como que uma traição. Mas nunca o vou esquecer, por ser para mim uma honra ser parecida com o avô dos pães.

~ ~ ~

Ouvi toda a vida que sou parecida com a avó dos pães e isso constituiu sempre uma dificuldade para mim. Eu amava a minha avó mas, se for para sermos honestos, temos de admitir que ela tinha um feitio difícil, muito difícil. E eu não queria ser comparada com uma pessoa difícil. Ninguém quer ser uma pessoa difícil. Antes triste do que difícil. Até hoje, tenho esta insegurança que me traz a auto-estima e a auto-confiança em corrupio. Por vezes, dou por mim a pensar se terei sido difícil com determinada pessoa, ou em determinada situação. Isto também pode tornar-se num pau-de-dois-bicos, pois uma pessoa menos honesta com os seus sentimentos pode usar isto facilmente contra mim. Basta que alguém, para não assumir a sua falha, me acuse de estar a ser difícil e deixar-me de quatro, ficando ali uma situação mal resolvida mas declarada como finda.

Fui aprendendo a juntar bocadinhos bons para procurar neutralizar a minha parte “difícil”, um lado que creio estar muito no rigor com que assumo as coisas e a minha frontalidade terrível. Vou buscar outros bocadinhos, os bons, à avó dos pães que também misturo com bocadinhos bons dos outros avós, e assim levo os meus dias a procurar ser uma pessoa melhor.

~ ~ ~

Acredito nisto: procura ser uma pessoa melhor a cada dia.

Ser uma pessoa melhor é, para mim, ser uma pessoa que leva a sua vida, com as suas pessoas e no desenvolvimento dos seus interesses, numa ética de vida que procura o bem-estar sem consequente prejuízo de outros.

Acontece que, por mais que façamos, há sempre falhas na circunstância do bem-estar. Essas falhas podem ser do exterior, como o exemplo dos acontecimentos de vida, ou do interior, como o exemplo da predisposição genética.
E eu tenho andado tão periclitante nesta coisa do bem-estar, quer espiritual, quer físico.

É de propósito que digo espiritual e não emocional e não vejo sentido em explicar essa opção.

Temos vivido uns anos muito intensos cá para estes lados da minha família. É sempre tudo tão grande, é sempre tudo tão de vida ou de morte. Há sempre tantos eventos, tantas reflexões, tantas decisões, tantas alegrias e tantos medos.
Isto são coisas espirituais e merecem a devida parcimónia. Importa encontrarmos o lugar para o seu crescimento. Importa encontrar o lado da vida que proporcione a sua aceitação.

~ ~ ~

Na verdade, eu não sei se o meu avô dos pães trazia uma tristeza dentro de si, mas a observação da minha mãe fez sentido. Trago uma tristesse dentro de mim, desde pequenina. Porém, nada do que tenho sentido tem a ver com essa tristesse, o que tenho sentido tem a ver com desalento, com a procura de me adaptar às realidades duras da vida. O que tenho sentido tem a ver com doença, minha e dos meus. O que tenho sentido tem a ver com medo e com impotência. O que tenho sentido tem nome e não é de cá dentro, vem de fora, sem dó nem piedade.
É tristeza, não é a minha tristesse.
E é-me muito importante reconhecer esta diferença e actuar.

Tenho procurado dar o lugar devido à tristeza sem me afligir imediatamente em tarefas vãs a procurar enxotá-la dos meus dias. Ela tem estado aí. Os motivos para a sua existência são reais. Já ouviram falar deles por aqui.
A tristeza tem-me rondado, fruto deste sofrimento e deste medo. Hoje de manhã, percebendo que estava a tentar disfarçá-la com as dores físicas que exigiram analgesia, pensei: se não tiveres forças para dar um giro ao final da tarde, vais para casa deitar este corpo dorido no sofá e vais ouvir as canções mais tristes que conheces e vais chorar.

Há que encontrar um lugar para tudo, nuns dias dá para ir beber uns finos e rir de baboseiras, noutros dias ouvem-se canções tristes.
Contando com o dia seguinte.
Contando que teremos forças para nos desenrolarmos do próprio corpo, dos dramas próprios, e dar lugar a toadas mais alegres.


III
Medo & raiva

Ontem, com a carta da convocatória na mão, apeteceu-me iniciar um sprint e fugir, mas eu sei que tenho pouquíssima resistência e que antes de chegar ao fim da minha rua já estaria com os bofes de fora, encostada a um muro, a arfar defraudada com a minha própria raiva.
Não sei que pensar disto tudo. 
Não tenho medo de cateteres e agulhas e o diabo a sete, mas tenho medo. Tenho medo que o estadiamento da minha endometriose obrigue à intervenção noutros órgãos. Tenho medo da vida com terapêutica hormonal de substituição. Receio que a histerectomia total não compense em qualidade de vida – que é, afinal, o meu maior motivo para me sujeitar a tão grande mutilação.

Repara, Cipreste: vais permitir que te amputem.

Não estou a, nem vou, dramatizar. Mas as coisas são o que são e uma histerectomia total é uma amputação.

IV
Bondade

Não sei o que pensar e preciso de me preparar: organizar a casa, dar conta de dois ou três recados, organizar a minha vida profissional, fazer a mala e chorar. 
Tenho de fazer isso. As lágrimas andam por aqui a cirandar e não saem, mas eu sei que têm de sair. Preciso de chorar o meu corpo para que depois se possa renovar. Não sei se isto é certo ou errado, nem sequer sei se há um certo e um errado para estas coisas. 
O que sei - o que sinto, é que agora é hora de ouvir canções tristes.
Para depois me preparar para entregar o meu corpo nas mãos de estranhos e contar com a sua bondade.



Deixo-vos com esta imagem por vários motivos, um deles é que sei que me esqueci disto no trato a uma pessoa a semana passada. Entretanto, já me retractei com a pessoa, mas fico sempre um pouco desiludida comigo quando deixo que algo me tolha a visão. 
O conceito de neutralização - de que passei a tomar mais consciência desde uma das formações da adopção, parece-me ser um bom passo para conseguirmos lembrar desta máxima: sermos bondosos uns com os outros, pois estamos todos a travar batalhas.

Desculpem o estilo soturno dos últimos dias,
I'm gonna be alright ;) eu sei que sim

Cipreste

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Dias "não"

Há dias em que a endometriose toma conta de nós. São os dias de calibre “não”. Apetece dizer “não” a tudo e ficar debaixo das mantas.
Tenho noção de que não sou um caso extremo, embora a minha indicação terapêutica seja a histerectomia total, não posso, nem de longe, queixar-me ao pé de determinadas mulheres a quem a endometriose roubou quase a autonomia. Mas, neste momento, sinto-me um bocado sequestrada pela porcaria da doença.
Comecei o ano no rescaldo de 2 FIVs mal sucedidas e parti para lista de espera para histerectomia. O médico deu-me uma expectativa de que esperaria cerca de 1 mês e meio a 2 meses, já lá vão 4 meses e a contar... No início, cuidei de mim, alimentação o mais saudável possível, muitas caminhadas, etc. Começaram as hemorragias, mesmo com pílula contínua, e tudo descambou em Fevereiro. Nunca mais fui a mesma. O médico disse-me para não me preocupar porque estava como "prioritária" e disse-me que é mesmo importante que eu faça a pílula. Só "descansei" desta instabilidade toda umas semanitas em Março em que isto andou calmo, de resto, tem sido um contínuo de hemorragias e expectativa (as dores são intermitentes – hoje: check!).
Não tomo determinados compromissos profissionais, tenho gente à minha espera, a quem já tinha prometido estar disponível em Maio e a quem agora só consigo encolher os ombros e ficar envergonhada por não estar a cumprir com elas :(
Enfim, uma situação em que ninguém tem culpa, mas em que muitas pessoas são afectadas.
O meu corpo já só é um meio de chegar às pessoas. Não tenho gosto em arranjar-me, tenho fumado uns cigarros, ou tenho noites ocupadas com sonhos mirabolantes ou pesadelos ou então simplesmente não durmo.
Vou para o trabalho em modo zombie e não sei o que dizer ao meu chefe quando me pede para começar determinados serviços com determinados clientes, serviços esses que não sei se terei de interromper... ou não.

Não me apetece sair, fico à espera de um telefonema, de um postal...

Acresce a esta expectativa, em nada pequena, a da visita domiciliária pela equipa de adopções. Neste momento, o nosso processo já passou 2 meses do prazo legal para nos darem o certificado. O que é que uma pessoa vai fazer? Insistir com eles? Depois pedem imensas desculpas, são muito simpáticos e dizem que nada fica para trás, que a nossa “vez” na lista conta a partir da entrega dos papéis, etc, etc. Uma pessoa vai incompatibilizar-se com os seus maiores aliados neste processo? Não me parece. Resta-nos esperar “pacientemente”. Só não gosto de pensar que, com tanta "publicidade" que fazem às crianças mais velhas que ninguém quer adoptar (mas eu quero!), que não esteja para aí alguém à minha espera e nós deste lado também à espera...

O Verão aí à porta e eu com tantas coisas por começar e sem nada acabado :( e, tantas vezes, a evitar olhar-me ao espelho. Sei que disfarço bem, que "mesmo assim" faço muitas coisas, mas esta não sou eu - eu inteira. Enfim, a vida de uma pessoa com endometriose.
Resta-me dar-me espaço para sentir o desalento que estou a sentir para depois conseguir procurar a alegria que existe dentro de mim. Rodear-me dos que são reais na minha vida, aqueles que gostam da minha companhia até em dias "não". 
Resta-me, enfim, libertar um pouco da minha angústia neste desabafo. Falar ajuda e é isso que vim aqui fazer.
Bom dia,

Cipreste

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Sonhar, uma constante da vida*

Sonho com a maternidade desde pequenina. Percorri o Anita Mamã vezes sem conta, sei-o de cor. Comecei por sonhar com bordado inglês e colónia de bebé e sapatinhos Chicco e fraldas e biberões. Sonhei com papas e sestas consoladas e histórias da noite. Sonhei que cuidaria de uma família – da minha família, que cuidaria de preparar cada um para o mundo lá fora. Sonhei com dois mundos, o de fora e o de dentro.
Sonhei com cheirinho a bebé e cedo comecei a cirandar as vizinhas que tinham bebés. E passei a ser uma espécie de ajuda para ficar a ver o bebé “enquanto vou só ali à loja”. Assim que as minhas mãos atingiram o tamanho suficiente, confiaram-me mudas de fraldas e rapidamente passei a poder dar as papas também. Tudo - tudo - me encantava. Estes bebés, por vezes irmãs e irmãos dos meus amigos, esticavam os braços para mim como segunda pessoa de eleição após as suas mães. Volta e meia, eu andava rodeada de bebés e infantes (e de cães, mas isso é uma história para contar noutro dia). No meio disto, sonhava com a minha hora. Quando eu for mãe. Ponto final. Sem reticências.
Vieram os sobrinhos e uma nova dimensão da vivência do amor às crianças. E passei a cuidar com outra responsabilidade. Por esta altura, sonhar com a maternidade era muito mais do que a Anita Mamã. Eu já tinha passado pelas noites de choro da minha menina, pelas suas dorzinhas na perna aos dois anos (que nenhum médico conseguia resolver, uma angústia), pela traquinice do mais novo, pelas birritas dos dois, pela surpresa da alegria que se sente só de se pensar naqueles dois seres. O sonho de ser mãe era algo mais. Crescera comigo. Eu era casada com o tio deles e sonhava com o dia em que lhes daria primos e os veria todos juntos a brincar.
Entretanto, a infertilidade foi admitida. Fui operada, fiz uma gravidez e sofri um aborto espontâneo. Pelo meio, houve a possibilidade de adopção que não foi concretizada (um dia destes vou falar – muito – disto). E veio o divórcio.
A vida deu uma reviravolta e eu nunca dei primos à Princesa e ao Gostarzinho. Cresceram sem brincar com os primos e isso ficou-me sempre como uma mágoa. Sonhei tanto com os primos todos juntos. E é disso que quero dizer - que sonhamos. Que é impossível não sonhar.

Depois vi-me sozinha numa cidade sem qualquer raiz, qualquer amizade, apenas trabalho. Hoje parece-me que os anos entre essa solidão e o encontro com o Chaparro foram muito mais rápidos do que, de facto, foram. Nesse tempo, o sonho de ser mãe deixou de fazer sentido. Nunca tive o impulso de construir uma família sem um companheiro. Agora, já penso que talvez nesta idade considerasse ser mãe solteira, acaso não estivesse numa relação, mas na altura nunca me passou pela cabeça. Assim, o sonho de ser mãe adormeceu durante alguns anos.

A nossa relação aconteceu muito rapidamente. Logo percebemos que estávamos para ficar e, com isso, planeámos, também logo, a vida a dois. E dei por mim a olhar para ele e a pensar “quero ter filhos com ele, quero que seja o pai dos meus filhos”. E o sentimento foi recíproco, falámos desde cedo em filhos. No entanto, eu trazia uma ferida ainda aberta do meu passado – tanto da infertilidade e da perda, como da adopção não concretizada. E percebi a força que o medo pode ter sobre nós, uma força monstruosa.
Para que saibam o quanto resisti a recomeçar nas consultas, digo-vos que marcámos uma consulta em 2010 (4 anos após o início da relação), no privado, para obter um diagnóstico, mas tivemos de desmarcar por motivos de saúde familiar e só voltámos a remarcar em 2011, e não estou a falar da distância Dezembro-Janeiro, mas de 11 meses.

Recomeçado o vai-vem das consultas de infertilidade, vi-me no meio de picas, medo, ecografias, ansiedade, exames dolorosos, desilusões, a mágoa de não atingir um sonho. Cada insucesso na infertilidade foi como uma derrota que me deitou abaixo naquilo que me deveria ser de direito, por natureza e não por decretos inventados pela humanidade. Aqueles momentos nas salas de espera, aquele lugar prévio a nos dizerem se havia folículos, se haveria lugar a punção, se houve óvulos, se houve fecundação, se haveria transferência, eram esperas de um desgaste horroroso. E eu perdi a luta. A cada falha, era eu que não prestava, era eu dilacerada por dentro. Era o meu sonho destruído, passo a passo.
Chegou o dia em que conseguimos dois embriões e eu lutei com todas as minhas forças para fingir, para mim e para os outros, que estava lidar bem com o facto da bióloga me dizer que os meus meninos não estavam a evoluir. Ao fim de dois dias, recebi a notícia – os nossos embriões eram inviáveis. Inviáveis, os meus filhos eram inviáveis e nunca chegariam a entrar no meu útero (também inviável, já agora…). Foram os cortes derradeiros na minha alma. Ajudei a fazer os golpes, em modo de automutilação, fingindo que estava a lidar bem com aquilo tudo. A dor foi tão grande que não consegui encará-la de frente. E acreditem que se há coisa que sou é corajosa, mas as pernas falharam-me e não consegui olhar a minha dor de frente.
Fingi que me prepararia para novo tratamento.

Chorei pouco na altura. Ando a chorar agora, aos bocadinhos. Já percebi que funciono assim, fiz o mesmo quando sofri o aborto, não chorei no momento e depois fiz o luto ao relanti. Penso que esta forma de estar nas coisas protege-me, por um lado, de não cair numa cama a chorar durante semanas seguidas, mas, por outro lado, traz-me num sofrimento mais arrastado.

Há dias, numa sala privada online em que participo, uma companheira de luta deixou-nos esta mensagem:

«O sonho acabou...
Fiz um tratamento de infertilidade, o beta na sexta deu positivo, hoje repeti e o valor baixou, estou mal...a minha revolta é muito grande, tantos sacrifícios e o final é o mais devastador!
Nunca deixem de acreditar, mas hoje não estou nos dias para ter estes pensamentos, são anos de muita batalha!
Um beijinho a todas»

O sonho acabou, reticências. Há tanta coisa dentro destas reticências. Reparem que não me arrogo falar em nome da mulher que recebeu a notícia brutal. Não falo em nome de mais ninguém, senão de mim. Sei apenas que há coisas da dor que têm nome e reconheço-as amiúde em companheiras de confidência. Esta mensagem foi apenas um mote para me tocar a ferida e humedecer os olhos em nome de uma estranha.

Falo do que é em mim este sonho de ser mãe. Falo do que é o corpo todo abrasado em nome de um sonho. Falo das reticências que abomino na escrita literária, mas que não sei como contornar quando falo do meu sonho de ser mãe.
Definitivamente, ainda tenho lágrimas para chorar. Ainda não consigo ler relatos destes sem sentir tudo cá dentro, cada momento, o telefonema... os seus embriões não resistiram. Sem reticências, não eram viáveis, ponto final.

Passados cerca de 2 meses, acordei num bonito Sábado de manhã e senti no meu coração que podia partir para a adopção. O Freixo estava cá, chamei o Chaparro ao quarto, que já se tinha levantado, e falámos em sussurro para não fazer barulho. Disse-lhe que entendia que uma nova fertilização InVitro seria mal sucedida porque a minha endometriose claramente tinha piorado. Perguntei-lhe o que sentia em relação à adopção dizendo-lhe que me sentia cheia de amor para dar e de força para enfrentar (novamente) um processo de adopção.
E o Chaparro sorriu com o seu sorriso maravilhoso e disse-me que só estava à espera de encerrarmos o capítulo dos tratamentos para ter “a conversa da adopção” comigo.

Reparem nesta ideia: ele, o meu amor, só estava à espera que eu me preparasse.

É possível ser mais afortunada do que isto?

É esta a história da minha vida. É este o rumo do meu sonho de ser mãe, do meu sonho de ter filhos. Tenho uma ferida cá dentro, mas também tenho esperança. Escolhi o caminho da adopção e entretanto percebi que a adopção não é, de facto, uma alternativa à forma biológica da maternidade. São mundos paralelos. Mas o meu sonho é o mesmo: ter filhos.


Cipreste


* evocando António Gedeão in Pedra Filosofal 

sexta-feira, 14 de março de 2014

Uma espécie de carta aberta ao Chaparro

Que dias.
Dias cheios de tudo. Sinto que deixei de ter noção do tempo.

Ontem, no regresso de Lisboa, o Chaparro dizia-me que se sentia realizado, que tinha sensação de missão cumprida. Naquele momento, tudo se revolveu dentro de mim e fiquei sem voz por uns segundos. Queria dizer-lhe o mundo todo e não conseguia. Sentia as ideias na minha cabeça, mas não conseguia fazer delas um discurso. Após alguns segundos de silêncio consegui confessar-lhe pensamentos muito maus que tive há duas semanas. Já na altura eu sabia que eram pensamentos maus e que, ao confessá-los, iria levar com uma rodada de “sua parva!”. Por momentos, senti um poucochinho daquilo que penso devem sentir pessoas que ficam fisicamente dependentes de terceiros e resolvem acabar as suas relações amorosas para não “prenderem” a vida dos seus companheiros.

Por vezes, a carga de se viver com determinadas condições é tão desmedida que se perde o Norte e damos por nós a ter pensamentos que jamais pensámos vir a ter. Subitamente essa noção de se ser um peso na vida de alguém está dentro da nossa pele e, inibidos de qualquer clarividência, o que nos surge é a vontade de libertar o nosso objecto de amor de tal encargo.

E podem chamar-me parva à vontade, mas foi o que eu senti. Que viver a meu lado acarreta demasiada empreitada, que a vida poderia ser muito mais simples longe de mim. Que provoco instabilidade a qualquer um que se proponha viver os dias a meu lado. Que nunca se sabe com o que se pode contar, porque num dia estou activa e faço imensas coisas e até mobilizo gente para coisas giras mas no dia seguinte posso estar prostrada no sofá. Acreditem que cheguei a questionar-me se não seria bipolar. Eu sei que é uma leviandade imaginar psicopatologias, mas juro que o pensei.

As voltas que temos dado para construir uma família - consultas e tratamentos de fertilidade, as voltas e pesquisas e estudos para uma adopção consciente, são tudo manobras que tiram muito dos dias a outros tantos projectos em que estamos metidos, e que seriam suficientes por si só para preencher a vida. São coisas maravilhosas que nos realizam e chegam a muita gente, e não tem nada a ver com filhos nem família nem saúde. Mas deu-nos para desejar filhos, e ao Chaparro calhou uma mulher que não é super-fixe-e-bué-fértil e que ainda-por-cima anda sempre a queixar-se de dores-aqui-e-acolá.

E foi assim que, de baixa médica em casa, dei por mim a pensar que o Chaparro estaria a desperdiçar a sua vida e criatividade ao meu lado e que provavelmente estaria muito melhor sem mim. Porém não tive coragem de lho confessar na altura, porque ele nunca se zangou comigo nestes quase 8 anos em que estamos juntos, mas não imagino que fosse ser muito agradável vê-lo zangado. E uma pessoa minimamente consciente quando tem pensamentos destes sabe que são proibidos e sabe dos argumentos que possam ser arremessados contra os mesmos. Pelo que me sobrou uma tarde de auto-comiseração em modo Madalena arrependida, no sofá, com (muitos) lenços de papel.

Portanto, ontem fiquei sem voz quando o Chaparro me disse sentir-se muito conciliado com a sua vida. Quer dizer… ele passou as últimas semanas a alimentar-me e a cuidar da casa e a assumir o meu papel nos nossos outros compromissos, faltou ao trabalho e foi para Lisboa acompanhar-me na marcha com o telefone a tocar cons-tan-te-men-te, rodear-se de mulheres como eu (não lhe bastasse uma!) e… e, nada! Sim! Faz todo o sentido, Chaparro! Sim, a nossa vida é completa mesmo com todos estes problemas e preocupações.

Podia ser sem dor, pois muito bem, mas é a nossa vida. E é uma vida partilhada. Linda.

Nunca (nunca) me mostraste a mínima dúvida ou impaciência sobre os meus relatos de dor. Saberás o quão gratificante é ter alguém que acredita em nós e que não nos apelida de histéricas inconformadas na sua condição de mulher? Oh céus. És uma dádiva tão maravilhosa. Dentre tantas coisas magníficas que és, és a negação da solidão.

E deves sentir orgulho em quem és.

Viste bem a quantidade de homens que (não) conseguiram estar lá ontem? Não é fácil (nem barato) faltar ao trabalho assim a meio da semana. Mas tu lá conseguiste estar ao meu lado. E entregaste panfletos pelas ruas de Lisboa a dezenas de pessoas. Chegaste-te às pessoas para as sensibilizar para uma doença comum mas incapacitante e negligenciada. De certeza que fizeste a diferença na vida de muitas pessoas ao apresentar-lhes a palavra endometriose.

Fazes a diferença bonita, todos os dias, na minha vida.
Perdoa-me o tom dramático, mas tenho de te dizer que se morresse hoje iria feliz e realizada.

Bem-dito sejas, tu, Chaparro, meu amor tão grande.

do filme Up (2009)

Cipreste

domingo, 9 de março de 2014

Um pedido de ajuda

Boa noite,

Hoje trago-vos agora um assunto um bocadinho diferente, é um pedido de ajuda

Na próxima 5ªfeira queríamos conseguir entregar esta petição na Assembleia da República, mas ainda não chegámos às 4000

A todos pedimos que divulguem, aos que não assinaram ainda pf assinem

Ficarão com gratidão das mulheres portuguesas com endometriose por não ignorarem este pedido***

Para conhecerem um pouco mais sobre endometriose:

quarta-feira, 5 de março de 2014

Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma*

Desci as escadas para almoçar e assim que sentei à mesa as lágrimas caíram copiosamente. O meu nível de frustração naquele momento estava muito elevado. Tinha acabado de passar por um momento de dor física horrorosa e esperava poder sentar-me sossegada com o Chaparro e o Freixo - que veio passar as mini-férias de Carnaval à sua segunda casa. Só queria um almoço em família, com o Chaparro a dizer disparates e eu e o Freixo a unir forças em desaprovação jocosa do seu comportamento, para que todos sentíssemos aquele calorzinho que se sente por dentro quando sabemos que estamos todos ali, que o mundo todo está naquela sala de jantar. E que nos pertencemos e que podemos contar uns com os outros daqui até ao céu. Mas caí em lágrimas. Um farrapo. E fiz do nosso almoço uma coisa preocupada e desalentada.
Já deitada no sofá, não me contive e pedi desculpas ao Freixo pelo almoço logrado e este, um querido, como sempre, disse-me que eu não tinha nada que pedir desculpas.

Não queria que este Carnaval tivesse sido em torno das minhas dores, mas não havia nada a fazer, elas ali estavam e o Chaparro deixou bem claro que íamos passar aqueles dias assim: em família.
Não vale a pena entrar em pormenores sobre o que aconteceu: uma desregulação que teve de ser regulada por “tentativa-erro” com medicação. Toda a violência física deste vaivém de hemorragias e dores levou-me a um estado de labilidade emocional que me assustou. E nessas alturas não há nada como nos deixarmos à mercê da protecção da família e dos amigos íntimos porque o resto da humanidade apresenta-se-nos muito hostil nessas horas.

Hoje voltei ao trabalho e pude fazê-lo devagarinho, o que me soube bem. Fiz daquelas coisas que nos deixam o sentimento de missão cumprida para o dia. Foi gratificante. É assim em muitos dias da minha lida e ainda bem que o foi hoje. Acrescente-se-lhe o calor e o cuidado com que me receberam de volta (só estive 6 dias ausente!). Foi tudo muito conciliador.
Porém, nem por isso senti menos vontade de vir para casa descansar. Embora as considere insignificantes, as dores ainda andam por aqui e tanta imensidão de existência humana com que lidei hoje deixou-me muito cansada.

E eis que chego ao tema cansaço.
Eu sei. Eu sei o que se passa. Não vou tentar fingir. Nem fugir.
Não foram apenas as perdas de sangue e uma eventual anemia (que não chegámos a avaliar) nem só o cansaço disso tudo que me trouxe a este estado de fragilidade.

Sou demasiado consciente dos meus processos para virar a cara para o lado, no entanto, às vezes demoro um bocadinho a formar uma linha de pensamento sobre o que se está a passar comigo. Agora reconheço o que se passa e tenho de me organizar para aceitar as feridas que estão em mim. E quando falamos de feridas, falamos de friabilidade e neste momento tenho de ter cuidado ao lamber as minhas pois não as quero em carne mas antes a sua cicatrização. E eu sou daquelas pessoas que aceita que as cicatrizes devem ser acarinhadas e servir para que nos lembremos - sempre. Não acredito que haja uma solução para se ir da ferida à pele intacta. [receio ter-vos proporcionado mais um momento de metáfora barata(?)]

Posto isto, tive de dar a mão à palmatória e adiar uma série de compromissos. Consegui reformular todos, felizmente. Custou-me especialmente um compromisso profissional que implica com a vida de uma pessoa especial, mas também sei que quando o retomar será comigo mais completa para assumir as competências que me são devidas.

E depois há outra coisa, só para tentar complicar decisões sensatas: sabem aquelas pessoas que não sabem parar? Pois, eu sou daquelas que ficam a remoer e a pensar que é um exagero, que afinal conseguiria dar vazão aos compromissos todos e tal. Mas felizmente tive um momento de lucidez quando assumi que não. E hoje senti que o esforço de ir trabalhar com tudo de mais mundano que implica - desde o acordar bem cedo, arranjar-me, ter energia para empatizar com pessoas cheias (cheias) de problemas, é o esforço que posso fazer.  Adiante.

Ao lusco-fusco, só quero cair nos braços do meu querido Chaparro e fazer tudo o resto o mais devagar possível. Sem grandes planos, segurando as pontas àquilo que não vale a pena abandonar, procurar olhar para as coisas vendo-lhes a beleza possível sem fazer um drama de cada vez que me der para o choro. 

É um grande rol que enfrento neste momento. O luto pelo sonho de gerar um filho. O luto do que implica uma histerectomia radical, aos 40, como descerrar de uma história de infertilidade. A luta do meu pai. A luta pela minha saúde, pois a cirurgia que aí vem ainda me pode trazer dissabores assim como não me garante a cura da endometriose, e a vida com a medicação e efeitos secundários de uma histerectomia radical.

Para já, o que se passa comigo é isso - a vida, e a minha é tão cheia de coisas boas que me parece que as más acabam por ser na mesma proporção advindo daí esta intensidade de mágoa.

Para já, batalharei com uma das minhas armas mais fortes: o amor pelo qual estou rodeada. Donde tenho de salientar a incondicionalidade e o orgulho com que o Chaparro se apresenta lado-a-lado comigo.
Sou uma felizarda.

Cipreste


Fulfillment, Gustav Klimt



* Miguel Esteves Cardoso via Citador

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

And sometimes we think we are not ok but really we are

Queria conseguir dizer do impacto que isto tem tido na minha vida, mas não sei se consigo. De cada vez que começo a teclar sobre esta moléstia, começo a chorar e não consigo avançar. Apago tudo e vou fazer outra coisa qualquer. Geralmente essa coisa qualquer é comer chocolate. Embora saibamos que a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer, um chocolate é um chocolate é um chocolate. Mimo, precisamos de mimo e de compreensão. E eu tenho isso. Tudo. E nem assim posso considerar que lido bem com isto. E daí, o que será lidar bem com isto? Um chorrilho de lugares comuns construídos na base da culpa judaico-cristã, é o que vos digo.

Cenário: passar-se mal todos os meses desde os 14 anos (menarca aos 13), muitos dos meses tendo de recorrer ao hospital para controlo da dor, sofrer hemorragias imensas, ter anemia, chegar à estação em que se planeia engravidar e os meses e os anos passam, sem filhos, mas com dores. Queixa-se de não ter filhos e ainda por cima ter dores e ter de ouvir a besta o diplomado em medicina a dizer “Não sei porque se está a queixar, 70% das mulheres férteis queixam-se de dores menstruais.”. Onde diabo terá aquele energúmeno diplomado em medicina ido buscar aquela estatística?

Após o 4º médico e mais 12 anos, alguém propõe um diagnóstico pela primeira vez: ENDOMETRIOSE.

Então, isto tem nome? E não é normal, é uma doença? Não é um tanto ou quanto exagero chamar-lhe doença? Agora que me habituei a dizer que é normal. Afinal, são só dores e hemorragias incapacitantes e causa de infertilidade.

Começam agora a ver onde encaixa o chorrilho de lugares comuns construídos na base da culpa judaico-cristã?

Fomos convencidas durante anos de que as nossas condições são nada mais do que a paga por sermos mulheres. No meu caso, mais de metade da minha vida tem sido marcada pela endometriose. Façam contas, sou uma quarentona (enxuta!) e comecei nestas andanças aos 14. A primeira vez que acordei com dores não fazia a mínima ideia do que se passava comigo. Tenho tão presente essa madrugada, a minha confusão sobre o que sentia, decidir se deveria acordar os meus pais, a ida ao hospital e o alívio após a medicação. E nunca mais parou. Quer dizer, intervalou há cerca de 15 anos após uma intervenção cirúrgica por laparoscopia, mas voltou passados uns anos.

Gostava de dizer com toda a certeza que eu não sou endometriose nem a endometriose toma conta da minha vida. Mas receio não o conseguir dizer sendo totalmente honesta. A minha biografia está muito habitada por esta maldita. Tive um casamento anterior que foi muito marcado para o final devido à questão “filhos” e esta questão não pode ser separada da questão endometriose. As dores já me inibiram demasiadas vezes de socializar e de trabalhar. Após os últimos tratamentos, à procura de uma gravidez, piorou exponencialmente e agora as minhas dores não se resumem ao período menstrual. Agora não há regra, é quando lhe apetece, e onde lhe apetece. E com a intensidade que lhe apetece. E isto cansa.
E isto cansa tanto.

Já não se trata de brincar com o Síndrome Pré-menstrual, é um ciclo non-stop. Não sei com o que posso contar. Passo umas semanas sem dores, passo as semanas seguintes com dores. Faço pílula contínua mas tenho hemorragias na mesma. Vou na terceira semana. Com hemorragias e com dores. E isto cansa.

E dou por mim a calçar as sapatilhas hoje de manhã para ir para o trabalho enquanto faço contas a quantas horas faltam para regressar a casa e deitar o corpo. E dou comigo em lágrimas e a afligir o Chaparro e a pensar que merda quero sentir-me melhor, com mais força. Sem dores e com mais força. A minha cabeça está activa e não pára, quero que o meu corpo corresponda, mas ele responde-me que estou cansada e que só o quero deitar. E tudo fica tão difícil e sinto-me a perder o chão e já sei que me vão perguntar o que tenho e só me vai apetecer fugir.

E isto cansa tanto.

Porque tem o resto da vida toda à volta.
A espera pela convocatória para a cirurgia. Já vos disse que o veredico de 3 médicos para o meu pecado de endometriose foi a histerectomia radical?
A nova etapa do meu pai. Mais um tratamento, paliativo e não curativo, já sabemos senhor doutor, mas não queremos saber e repudiamos isso tudo, isso tudo, isso tudo. O meu pai está bem, muito obrigada. O meu pai está bem.
E o resto da vida toda à nossa volta.
E o nosso amigo que emigrou com uma situação incerta e dizermos uns aos outros que vai correr tudo bem. Que preocupação.
E a nossa casa a ser feliz em preparação para o nosso filho ou a nossa filha ou os nossos filhos ou as nossas filhas, para a equipa de adopções aprovar. Para a equipa de adopções aprovar. Porém a equipa nunca mais chega, porque as equipas de adopções também têm baixas no pessoal, mas nós temos tanta dificuldade em compreender como é que um processo de adopção pode ser adiado ou atrasado ou lá o que é por falta de pessoal. E não compreendemos e ficamos com medo que o nosso filho ou a nossa filha ou os nossos filhos ou as nossas filhas estejam já à nossa espera e nós que nunca mais chegamos.
E nós que nunca mais chegamos.

E o resto da vida toda à nossa volta.

E ter energia para aplicar técnicas no nosso trabalho e conseguir ter uma palavra amiga para os clientes.

E querer chegar a casa e deitar o corpo. Vemos um filme num dia e choramos. Vemos outro filme noutro dia e já sabíamos que íamos chorar. E choramos uma vez mais.

cena final do filme Monster's Ball,
em que se come gelado de chocolate  :)
e ouvimos We're gonna be alright
E chega o dia em que dizemos não. Não. Dizemos não à forma como estas dores e estas feridas estão a tomar conta de nós. E arranjamos forças e vamos a pé para casa.  E pensamos eu não sou endometriose nem a endometriose toma conta da minha vida. Fazemos os cerca de 4 km a pé e recebemos o vento no rosto e lembramo-nos que temos o fogo dentro de nós*. E sentmo-lo - ao fogo, e pensamos: we’re gonna be alright.


E depois dizemo-lo em voz alta no meio da rua e não importa quem passa. We’re gonna be alright.
Assim que entramos em casa, cai uma tromba de água e sorrimos e repetimos as palavras da nossa querida amiga: And sometimes we think we are not ok but really we are.



* referência a A Estrada de Cormac McCarthy
Cipreste

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Vamos falar disto.

Dentre os meus amigos e conhecidos, quem esteja mais ou menos atento, já terá percebido que tenho dado alguns passos para sair do armário.
Ou seja, tanto andei que arranjei coragem para dar a cara: OLÁ, O MEU NOME É CIPRESTE E SOU PORTADORA DE ENDOMETRIOSE.

Trata-se de uma doença que me tem tomado alguns dos dias… desde os meus 14 anos.
Fui diagnosticada pelo 4º médico a quem me queixei, aos 27 anos (13 anos depois  do início dos sintomas!). Fui operada. E fui ignorante porque não procurei mais informação na altura, pensei que estava curada. Mas não. Tudo voltou. Hoje, às portas de fazer 40 anos, continuo com muitos dias marcados por esta malvada.

Muito há a dizer sobre a vida com endometriose.

Não nos olhem com pena, mas façam-nos um favor: ajudem a passar a palavra.
Porque CHEGA de deixar esta doença passar impune.
CHEGA de ouvir alguns médicos ainda da idade das trevas dizer-nos que é normal ter dores.
Aos que quiserem, e puderem, venham caminhar comigo no dia 13 de Março.

Não sei dizer grandes coisas sobre isto. Deixa-me sem palavras.

Não esqueçam o meu pedido: passem palavra.

Vamos falar disto.
Obrigada.

 

Fico com o meu sonho.

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