Mostrar mensagens com a etiqueta coragem & medo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta coragem & medo. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

dores muito específicas e muito sérias

Ler blogs ou livros de pessoas que foram adoptadas, os seus testemunhos de como viveram (e têm vivido) a condição de pessoa adoptada, tem sido o melhor e mais duro exercício para mim, enquanto a mãe adoptiva.

O meu maior desejo, a minha luta é manter-me sempre com a mente aberta e procurar uma certa clarividência nesta missão de ter as decisões de vida dos meus filhos nas mãos.

O meu maior receio é um dia perceber que de alguma forma os impedi de viver, de sentir a sua existência de forma plena.

Quando os nossos filhos precisam de colar peças do seu passado, não nos estão a rejeitar, estão a tentar sarar e o nosso papel é lamber-lhes as feridas.

Para além da validação das suas narrativas, um caminho que vamos seguindo é este, que verbalizamos junto deles sempre que surge (ou se repete) alguma dúvida:

- Ninguém manda no teu coração. O que tu sentes, só a ti diz respeito e ninguém, ninguém tem o direito de qualificar os teus sentimentos.

E rematamos sempre com:

- Se nos nossos corações cabem três filhos - tu e os teus irmãos, porque é que não pode haver lugar no teu para mais do que um pai ou mais do que uma mãe, por exemplo? Afinal, tu também amas mais do que um irmão, não é?




É preciso sentir as dores, é preciso deixar de enfiar as coisas num buraco escuro. É preciso caminhar lado-a-lado com eles. Se necessário, partir mesmo com eles à procura de respostas.
Já li testemunhos de adultos que foram adoptados em bebés e que descreviam sensações como de "membro fantasma" que relacionavam com a ausência de um (ou ambos) progenitores na sua história. Já li demasiados testemunhos sobre a sensação de se viver em dormência, aparentando ser a pessoa mais de bem com a vida, para fechar deliberadamente os olhos a isto. O suicídio e a automutilação têm números específicos de incidência em adolescentes adoptados (sendo bem certo que não estou a falar de números de Portugal, que nem sei se existem).

Não escrevo isto porque esteja alarmada (senão não o escrevia) nem para assustar ninguém, é apenas um resumo-muito-resumido do que sinto quando leio adultos ou adolescentes relatar a dor de lhes ter sido privado viver a sua narrativa completa em detrimento de terem de viver o sonho dos seus pais adoptivos.

É preciso abrir os braços a tudo o que os nossos filhos são, a toda a história que trazem consigo.
Quando nos propomos adoptar, temos de ter o coração aberto para a entrada nas nossas vidas não só dos nossos filhos, mas de todos a quem amam e cujo bem estar é necessário ao seu.

Não, a parentalidade na adopção, não é igual à parentalidade na biologia.

Cipreste

p.s. deixo este link - Lost Daughters, apenas como um ponto de partida para quem esteja interessado na temática; conheço outros lugares, com outras perspectivas, mas as dores são "as mesmas"

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

coragem major ~ coragem minor

Por vezes, sinto-me tão perdida. Tão longe das soluções que passam pela expressão “basta fazer isto ou aquilo” e, pronto, “já está!”. Para além de me sentir perdida, também me chego a sentir mal por  achar que não estou a encontrar no amor a solução para os problemas dos meus filhos. A ideia de que o amor tudo cura é muito linda, mas não encaixa milagrosamente no quotidiano das nossas dores. Quando vemos os nossos dias a seguir rumos dolorosos e amamos, mas não conseguimos que esse amor cure, acabamos a colocar em causa a nossa capacidade de amor. Será que isto é amor? É que, repare-se, se o amor tudo cura e eu não estou a curar ninguém, então isto não deve ser amor.

É. É do camandro.

Uma pessoa lê estas afirmações: “A ideia da não vinculação é monstruosa para a espécie humana” e que “para desenvolver-se bem, toda a criança precisa que alguém esteja louca por ela”(aqui). E fica a questionar o seu amor. Será que amo mal? Será que não lhes mostro que sou louca por eles? Num instante, estamos a pensar, oh, não, estou a fazer mal aos meus filhos. Eles portam-se assim porque se sentem mal-amados e eu sou a pior mãe do mundo.

É. Tenho dias assim. Depois eles sorriem e abraçam-se a mim e acontece uma palhaçada qualquer e sobrevivo novamente a mim.

~ ~ ~

Ultimamente, comecei a reler alguns dos meus posts pré-filhos e tenho tido felizes encontros. Nem sequer posso dizer que tenho engolido muitas das minhas palavras ;) afinal, a maternidade não me veio mostrar assim tanta incoerência. Na verdade, e já que estamos a falar das diferenças antes-depois, posso declarar que a grande diferença é a forma como encaro as opiniões alheias. Antigamente, avançava com a minha opinião, mas restava uma dúvida pesada sobre a opinião alheia, agora, embora reste sempre uma dúvida – que considero a dúvida razoável, senão seria uma tola cheia de certezas, avanço de forma firme.
Uma pessoa que não se munisse deste mecanismo nunca poderia sobreviver no dias em que pensa que ama mal e recebe simultaneamente opiniões alheias destrutivas.

Adiante. Ao reler os posts, tenho encontrado um ou outro excerto muito certeiros. Sobre os últimos tempos por cá, este que já partilhei ontem:

“Compreender quem somos é um processo difícil – mesmo quando temos histórias familiares intactas, longa e discriminadamente detalhadas. Quando não temos nada disso, compreender quem somos é muito mais difícil. Não admira que não se queira falar do assunto o tempo todo. É uma tarefa árdua. É um trabalho doloroso. Mas não devemos concluir que o assunto não interessa só porque ela não fala dele. Ela está a tentar perceber quem é, mesmo que não fale disso todos os dias. ”(aqui)

Adoptar crianças “mais velhas” tem a benesse de encontrarmos pessoas que já conseguem elaborar sobre as suas emoções. Se o fazem são outros quinhentos, pelo menos já têm a bagagem neuropsicológica para tal.
Assim são os meus filhos: com competências para elaborar sobre as suas emoções. E o mais lindo é que gostam de o fazer.

Há dias, a nossa assistente social, em resposta ao nosso email periódico em que enviamos notícias com fotografias, respondeu “os vossos filhos estão lindos e cheios de competências”.

Ena! Pensei… os meus filhos… cheios de competências. Uau, isto soou-me bem, muito bem, tão bem. Uma mãe precisa de ouvir estas coisas.

E é mesmo verdade que estão cheios de competências.

Como todas as mães, antes de o ser, sonhei muito com o que gostaria de fazer com os meus filhos. Sonhei com a música que aprenderiam, que ouviríamos, os concertos a que iríamos. Sonhei com a partilha que faríamos com eles dos nossos passatempos. Os nossos passatempos, meus e do Chaparro, passam maioritariamente pela área das artes. Apreciamos muito o conciliar das artes à natureza, praia, bosque, etc. Assim, damos uns toques na fotografia, escrita, instalação, leituras públicas, e participamos na organização de eventos relacionados.
Várias vezes por semana, os meninos fazem actuações para nós que passam pelo teatro e pela música. Agora começaram a compor! É mesmo admirável porque nenhum de nós lhes deu alguma vez tal ideia. Levamo-los a ateliers de ilustração, teatro, música, etc. Vamos a concertos, às vezes, várias vezes por semana, pois na escola da Magnólia são muito activos e são quase sempre de entrada livre. E eles adoram. Vibram. Desde a música clássica ao jazz. E sabem estar numa sala de espectáculos. Vêm para casa e mimetizam tudo. O Chaparrito é especialmente delicioso a imitar músicos e maestro.

Posso dizer que os nossos filhos abraçaram incondicionalmente o nosso amor pelas artes e tiram verdadeiro prazer delas.

Depois, há dias inteiros em que a televisão não é ligada. Obviamente que é por princípio nosso, como o hábito é que faz o monge, quando éramos só nós dois já havia este registo cá me casa. Liga-se quando é para se ver algum programa em específico. Se já fizeram os tpc, se já se estudou instrumento, se a mesa está posta para o jantar, ok, vemos um pouco do zigzag (depois há também o pormenor de que não temos tv-cabo). Com sorte, apanhamos o ioga que eles adoram fazer.

Ainda mantemos os nossos filhos ignorantes quanto às outras tecnologias – smartphone, tablet, computador. Vêem nos nossos, connosco, e não jogam. Não tenho qualquer dor de consciência em relação a isto e sei que rapidamente apanharão o comboio quando começarem. Além disso andam aí umas manchetes nos jornais a falar dos perigos da utilização destes dispositivos antes dos 12 anos – right on! Estamos dentro do prazo.

Não tenho pressa para estar a falar com os meus filhos e ter como reacção o silêncio acompanhado de uma expressão de dormência deles perante um écran. Aliás, eles sabem que se não nos respondem a chamamentos enquanto vêem televisão que esta é desligada imediatamente.
Somos muito maus, muito intransigentes. Já sabemos.

Portanto, juntando este não desperdiçar tempo frente a écrans à tal resposta positiva que eles têm aos estímulos artísticos, é um corrupio de espectáculos em nossa casa.

Há duas semanas, fomos a Serralves porque tinha de ver a exposição da Helena Almeida (acabava nesse fim-de-semana). A Magnólia foi simplesmente maravilhosa. Interpretou as séries dela de forma deslumbrante. Usou espontaneamente as palavras “luto”, “ferida”, “belo”. As pessoas que passavam por mim deviam ficar ofuscadas com o brilho que saía dos meus olhos.
Fizemos fotografias interpretativas das obras frente a elas, assumindo posições muito engraçadas. Frente ao “abraço” fizemos uma fotografia com os quatro abraçados. Acho que a determinada altura andava uma pessoa a perseguir-nos e ficou felicíssima por poder tirar-nos essa foto.

A semana passada, a Magnólia "enviou-nos" um convite para uma exposição que montou no corredor. Deviam ver. Ok, depois fotografo para verem, como ainda está patente, posso voltar lá. Chama-se "sentimentos" e está dividida em várias ilustrações com placas identificativas - incluindo nome da autora e ano de nascimento (tão sweet :) ). O nome das obras passa pela designação "etapa" que se segue pela ordem com números romanos e depois a explicação de tipo "se pensas que não sabes dançar, põe música e começa a mexer-te, vais ver que sabes dançar". Ficámos de queixo caído.

Isto tudo para dizer que tenho andado a rondar uma certas e determinadas questões junto da Magnólia e comecei a usar estas competências. Afinal, a arte serve para quê?

Não se esqueçam de que estou a falar disto: “Compreender quem somos é um processo difícil – mesmo quando temos histórias familiares intactas, longa e discriminadamente detalhadas. Quando não temos nada disso, compreender quem somos é muito mais difícil. Não admira que não se queira falar do assunto o tempo todo. É uma tarefa árdua. É um trabalho doloroso. Mas não devemos concluir que o assunto não interessa só porque ela não fala dele. Ela está a tentar perceber quem é, mesmo que não fale disso todos os dias. ”(aqui)

Esta semana, aconteceu algo extraordinário: a Magnólia contou-me pormenores da sua vida anterior que não constam dos relatórios oficiais. Estou a falar de factos que vão além de relatos do quotidiano.
Digo-vos que isto não é nada fácil.

A Magnólia gosta muito de usar a expressão “pozinhos mágicos”.
Eu disse-lhe que, se eu pudesse ter os pozinhos mágicos, utilizá-los-ia para que ela nunca tivesse tido de viver estas coisas. Ordenaria que ela tivesse sido sempre feliz desde o seu primeiro minuto, que nunca tivesse tido que ser “retirada” e que ainda hoje fosse muito feliz com as pessoas do seu passado, mesmo que o preço fosse viver a minha vida sem ela. Fiz questão que compreendesse que não estava a dizer que abdicaria dela. Ela compreendeu, acenou a cabeça à medida que as lágrimas lhe corriam pela face. As minhas já corriam há uns segundos.

Fizemos um acordo, propus-lhe um novo exercício. Uma nova tentativa para ver se conseguimos transformar um comportamento que ela tem e que a prejudica. Aceitou. Estamos agora neste novo tempo. Estou cautelosa. Já falhámos tantas vezes. Mas sinto cada vez mais a solidez disto tudo.



A adopção é uma coisa violentíssima. Para todas as partes. E não há texto ou palavra amiga que nos consiga fazer vislumbrar o quão violento pode ser tudo isto. Desde o amor ao aceitar a instalação de dores novas e permanentes.

É precisa coragem, sim senhora. Vejo muitos pais adoptivos dizer que se sentem ofendidos quando alguém lhes gaba a coragem. Compreendo ao que se referem: a coragem das crianças é ainda maior do que a nossa. Mas esta não deixa de ser também uma coragem.

Se as queremos distinguir, chamemos-lhe coragem major e coragem minor, então.

Sim, a coragem dos nossos filhos é major

Caramba, imaginem-se: ok, achámos que aquelas pessoas não sabiam amar-te e cuidar-te devidamente, trouxemos-te para esta casa e agora que te sentes seguro aqui vais embora e viver com estes senhores, que não conheces de lado nenhum, mas a quem vais chamar de pai e mãe, e que têm mil sonhos e expectativas para o que querem que tu sejas enquanto filho deles.

É isto que acontece. Por mais conscienciosos que tentemos ser, vamos também com a nossa bagagem de expectativas. 
E deve ser mesmo muito brutalmente assustador para uma criança e, sim, a coragem deles é maior do que a nossa.

Nem por isso, a nossa deixa de o ser. Eu, que sempre achei que encarava as emoções de frente (hahaha) e que sempre gostei de dar nome às coisas para procurar compreendê-las, tenho levado com cada safanão emocional que até fico a ver estrelas.
Enfrentar as dores dos nossos filhos é coragem, sim. É uma bela coragem e a minha vida é bela acima de tudo por causa da coragem que os meus filhos necessitam de mim. Não estamos curados da vida, nunca estaremos, mas caminhamos juntos e com coragem para o que der e vier.


Deixo-vos com um excerto a que volto muito.

«Deitei-me no chão, e não é fácil. É preciso ter sido queimado por muitos nomes, ter esquecido e relembrado a delicadeza, o sangue, a ironia, paisagens e transmutações, as formas, as vozes. Como se pudéssemos existir sem qualquer herança, com a fortuna apenas de um tesouro criado pela solidão. Deitado na terra, respiro contra o chão vivo; e como estou com a cara muito junto ao chão, o sopro bate na terra e volta-me à cara. É ainda assim uma bela coragem.»
.
Herberto Helder in Photomaton & Vox


Cipreste



terça-feira, 13 de maio de 2014

Canções tristes

I
Maldades googlianas

Pronto, já tenho data de internamento para a cirurgia. No meu jeito de navegadora inveterada, só porque sim, digitei “hospital packing” no Google e cliquei em Images. (sim, tenho por hábito pesquisar em inglês caso não esteja à procura de receitas de caldo verde) Pesquisem e vejam que “bonitos” resultados obtêm.
Bah. Não precisava de ser lembrada que vou ser internada numa maternidade não para trazer um filho em braços para casa mas para deixar os órgãos que tantos dissabores que têm dado desde há 26 anos, sendo o maior, precisamente, o impeditivo de gerar vida.
Preciso mesmo de ir ali chorar um bocadinho.

Na 6ª-feira, comecei a escrever um texto sobre a necessidade de chorar, um texto que não acabei, nem chorei como era o meu plano. Ao invés disso, fui sair com o Chaparro e dois amigos e seguiu-se um fim-de-semana de jardinagem, algo que é sempre muito terapêutico para mim.
De seguida, fica o texto inacabado.

II
Tristesse

Trago uma tristeza dentro de mim desde pequenina. Embora não seja francófona, faz-me sentido chamar-lhe tristesse.

Se partirmos de uma postura psicanalista-de-trazer-por-casa, podemos procurar identificar algum acontecimento de vida que seja responsável por esta característica. Se partirmos de uma postura geneticista-de-trazer-por-casa, podemos cabalmente afirmar que haverá um gene qualquer que é responsável por esta característica.
Não sei o que poderá ser identificado na minha meninice como responsável por esta tristesse. Radicais das filosofias New Age provavelmente diriam que, para começar, eu nem sequer queria nascer, pois tive de ser “arrancada a ferros” e chorei que me desunhei até aos 9 meses levando a minha mãe à exaustão, pelo que a minha tristesse já virá de vidas anteriores.
Por outro lado, se falarmos na genética, e partindo do princípio de que não sou adoptada, nunca esquecerei o dia em que a minha mãe me disse que eu sou tal-qual o meu avô, pai dela, também conhecido como “avô dos pães”, por ser padeiro. Quando perguntei à minha mãe porque acha que sou parecida com o avô dos pães, ela simplesmente respondeu “Porque ele também tinha uma tristeza.”. Nunca mais falámos disto, como se proferir que o seu pai tinha uma tristeza fora como que uma traição. Mas nunca o vou esquecer, por ser para mim uma honra ser parecida com o avô dos pães.

~ ~ ~

Ouvi toda a vida que sou parecida com a avó dos pães e isso constituiu sempre uma dificuldade para mim. Eu amava a minha avó mas, se for para sermos honestos, temos de admitir que ela tinha um feitio difícil, muito difícil. E eu não queria ser comparada com uma pessoa difícil. Ninguém quer ser uma pessoa difícil. Antes triste do que difícil. Até hoje, tenho esta insegurança que me traz a auto-estima e a auto-confiança em corrupio. Por vezes, dou por mim a pensar se terei sido difícil com determinada pessoa, ou em determinada situação. Isto também pode tornar-se num pau-de-dois-bicos, pois uma pessoa menos honesta com os seus sentimentos pode usar isto facilmente contra mim. Basta que alguém, para não assumir a sua falha, me acuse de estar a ser difícil e deixar-me de quatro, ficando ali uma situação mal resolvida mas declarada como finda.

Fui aprendendo a juntar bocadinhos bons para procurar neutralizar a minha parte “difícil”, um lado que creio estar muito no rigor com que assumo as coisas e a minha frontalidade terrível. Vou buscar outros bocadinhos, os bons, à avó dos pães que também misturo com bocadinhos bons dos outros avós, e assim levo os meus dias a procurar ser uma pessoa melhor.

~ ~ ~

Acredito nisto: procura ser uma pessoa melhor a cada dia.

Ser uma pessoa melhor é, para mim, ser uma pessoa que leva a sua vida, com as suas pessoas e no desenvolvimento dos seus interesses, numa ética de vida que procura o bem-estar sem consequente prejuízo de outros.

Acontece que, por mais que façamos, há sempre falhas na circunstância do bem-estar. Essas falhas podem ser do exterior, como o exemplo dos acontecimentos de vida, ou do interior, como o exemplo da predisposição genética.
E eu tenho andado tão periclitante nesta coisa do bem-estar, quer espiritual, quer físico.

É de propósito que digo espiritual e não emocional e não vejo sentido em explicar essa opção.

Temos vivido uns anos muito intensos cá para estes lados da minha família. É sempre tudo tão grande, é sempre tudo tão de vida ou de morte. Há sempre tantos eventos, tantas reflexões, tantas decisões, tantas alegrias e tantos medos.
Isto são coisas espirituais e merecem a devida parcimónia. Importa encontrarmos o lugar para o seu crescimento. Importa encontrar o lado da vida que proporcione a sua aceitação.

~ ~ ~

Na verdade, eu não sei se o meu avô dos pães trazia uma tristeza dentro de si, mas a observação da minha mãe fez sentido. Trago uma tristesse dentro de mim, desde pequenina. Porém, nada do que tenho sentido tem a ver com essa tristesse, o que tenho sentido tem a ver com desalento, com a procura de me adaptar às realidades duras da vida. O que tenho sentido tem a ver com doença, minha e dos meus. O que tenho sentido tem a ver com medo e com impotência. O que tenho sentido tem nome e não é de cá dentro, vem de fora, sem dó nem piedade.
É tristeza, não é a minha tristesse.
E é-me muito importante reconhecer esta diferença e actuar.

Tenho procurado dar o lugar devido à tristeza sem me afligir imediatamente em tarefas vãs a procurar enxotá-la dos meus dias. Ela tem estado aí. Os motivos para a sua existência são reais. Já ouviram falar deles por aqui.
A tristeza tem-me rondado, fruto deste sofrimento e deste medo. Hoje de manhã, percebendo que estava a tentar disfarçá-la com as dores físicas que exigiram analgesia, pensei: se não tiveres forças para dar um giro ao final da tarde, vais para casa deitar este corpo dorido no sofá e vais ouvir as canções mais tristes que conheces e vais chorar.

Há que encontrar um lugar para tudo, nuns dias dá para ir beber uns finos e rir de baboseiras, noutros dias ouvem-se canções tristes.
Contando com o dia seguinte.
Contando que teremos forças para nos desenrolarmos do próprio corpo, dos dramas próprios, e dar lugar a toadas mais alegres.


III
Medo & raiva

Ontem, com a carta da convocatória na mão, apeteceu-me iniciar um sprint e fugir, mas eu sei que tenho pouquíssima resistência e que antes de chegar ao fim da minha rua já estaria com os bofes de fora, encostada a um muro, a arfar defraudada com a minha própria raiva.
Não sei que pensar disto tudo. 
Não tenho medo de cateteres e agulhas e o diabo a sete, mas tenho medo. Tenho medo que o estadiamento da minha endometriose obrigue à intervenção noutros órgãos. Tenho medo da vida com terapêutica hormonal de substituição. Receio que a histerectomia total não compense em qualidade de vida – que é, afinal, o meu maior motivo para me sujeitar a tão grande mutilação.

Repara, Cipreste: vais permitir que te amputem.

Não estou a, nem vou, dramatizar. Mas as coisas são o que são e uma histerectomia total é uma amputação.

IV
Bondade

Não sei o que pensar e preciso de me preparar: organizar a casa, dar conta de dois ou três recados, organizar a minha vida profissional, fazer a mala e chorar. 
Tenho de fazer isso. As lágrimas andam por aqui a cirandar e não saem, mas eu sei que têm de sair. Preciso de chorar o meu corpo para que depois se possa renovar. Não sei se isto é certo ou errado, nem sequer sei se há um certo e um errado para estas coisas. 
O que sei - o que sinto, é que agora é hora de ouvir canções tristes.
Para depois me preparar para entregar o meu corpo nas mãos de estranhos e contar com a sua bondade.



Deixo-vos com esta imagem por vários motivos, um deles é que sei que me esqueci disto no trato a uma pessoa a semana passada. Entretanto, já me retractei com a pessoa, mas fico sempre um pouco desiludida comigo quando deixo que algo me tolha a visão. 
O conceito de neutralização - de que passei a tomar mais consciência desde uma das formações da adopção, parece-me ser um bom passo para conseguirmos lembrar desta máxima: sermos bondosos uns com os outros, pois estamos todos a travar batalhas.

Desculpem o estilo soturno dos últimos dias,
I'm gonna be alright ;) eu sei que sim

Cipreste

terça-feira, 29 de abril de 2014

Planos para amar - Parte II

Ainda não tinha afixado aqui a parte II da saga Planos para amar simplesmente porque não tinha fotografado as provas.
Alguns de nós somos mais tagarelas do que outros, entre mim e o Chaparro, a tagarelice está na mesma proporção de posts afixados no blog: 99% meus para 1% dele. Por vezes, comenta os posts que vou colocando aqui, ora na caixa de comentários, ora por e-mail, ora frente-a-frente. Desta vez, deixou este "comentário", que encontrei no dia seguinte a ter publicado o post, nas paredes da nossa casa:


Esta é uma parede de cerca de 50 cm que tem do lado direito a porta do nosso quarto e do lado esquerdo a porta do quarto do(s) nosso(s) futuro(s) filho(s), dá para espreitar o sofá-cama que ocupa o espaço enquanto não houver lá uma cama com destinatário(s) específico(s).

Todos os dias: o amor :)

Quem tem um Chaparro tem tudo.

Cipreste

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Planos para amar

Acho este miúdo genial na sua expressão dos sentimentos:



Eu também não gosto sempre das pessoas que amo, embora, enfim, são raras as vezes. E sei que é recíproco.

Sobre os Exercícios do futuro hipotético - coisas do contacto com a equipa de adopções, cujas ideias ando a tentar arrumar, sobram-me sempre duas coisas como as principais "campaínhas":

1. Por vezes, as marcas de se viver anos numa instituição - longe de um ambiente familiar, são mais intensas do que os traumas do passado, propriamente ditos.

2. Na sua maioria, uma das grandes dificuldades que as crianças adoptadas apresentam a início é a confiança no adulto. Estas crianças* não costumam sequer saber o que é acreditar que se é amado e que o amor dos pais é, não acontece apenas conforme os dias ou o humor das partes. Que os pais amam todos os dias, a cada segundo. Para sempre.

Tenho muita curiosidade (e medos) sobre este amor de que tanto se fala. Ando a confiar no futuro, é o que me resta em relação a este assunto.
Eu e o Chaparro escrevemos mensagens um ao outro nas paredes cá de casa, pela escadaria acima. Aguardo ansiosamente pelo dia em que vou escrever para, e com, os meus filhos, nas mesmas paredes.
Talvez uma mensagem assim:

via

Ou a promessa - que aos filhos podemos, e devemos, fazer esta promessa: para sempre.

Cipreste


* já sabem que detesto generalizações, certo? 

sexta-feira, 7 de março de 2014

Estofo

Às vezes receio andar enganada e afinal não ter o estofo emocional necessário para ser mãe. Se, por um lado, sou uma durona exigente comigo e com os outros, por vezes até com o pé na rigidez, por outro lado, sei que sou um coração de manteiga. E desde que sei que hei-de ser mãe a coisa piorou *muito*. Não posso ler ou ver uma notícia que implique sofrimento de crianças que fico logo de lágrimas nos olhos. Mas nem sempre as minhas lágrimas têm motivos tão nobres. Reparem: quando, há uns anos, fiz uma sessão rara de cinema com as amigas em que fomos ver o filme da série “O Sexo e a Cidade”, uma amiga deu por mim a chorar. Elas gozam comigo até hoje por causa desse episódio. Caramba, aquela cena da Carrie de vestido de noiva tão-lindo-tão-lindo a deixar cair o telefone quando o Big lhe diz que não é capaz de ir para a frente com o casamento, e ela quase a desfalecer, deita qualquer um abaixo. Não deita?

Sei que, por vezes, tenho a sensibilidade  à flor da pele. E acreditem que não é fácil no exercício da minha profissão. Felizmente, nunca me trouxe dissabores.

Toco neste assunto porque há bocado falei com a minha mãezinha querida ao telefone. [É tão mãezinha querida, a minha mãe, se vissem o amor com que cuida daqueles que ama. Um dia destes falo dela.] Sobre o telefonema, enfim, aproveitei um intervalo para saber como estão todos e ter um update sobre como o meu pai  se está a dar com o novo tratamento. É verdade que ele é muito forte e tem um excelente estado geral, mas cada efeito secundário que tem tido é como se nos espetassem agulhas no corpo. Dói saber que o nosso pai tem cancro e que ainda por cima tem de sofrer para suportar os tratamentos. Dói muito. 
Eis que a minha mãe relata um episódio de indigestão por causa de tomate verde que deu numa noite mal dormida, náuseas, vómitos e tremores. E porque achamos que já chega o currículo de 13 anos de cancro(s), pensamos que o nosso pai deveria ter um cartão à laia do do monopólio “Você está livre da prisão” e nunca deveria ser incomodado com outras maleitas. 
 À medida que a minha mãe vai contando os dissabores da indigestão, sinto as lágrimas a brotarem e uma pedrinha na alma. Fico triste como a noite, como dizia a minha avó. Não queria que estas coisas lhe acontecessem. Não é justo. E, embora saibamos que estas coisas não tratam de justiça e são arbitrárias, sentimos um certo alento por nos manifestarmos: não é justo. Também sei que o meu estado de fragilidade não ajuda a lidar com estas coisas. (ando bem melhor e activa, fiquem sabendo :) e hoje até acordei animada) 
A minha voz entaramela e tento disfarçar para que a minha mãe não perceba e, enfim, consigo que o telefonema chegue ao fim para deixar cair uma ou duas lágrimas. 
E, de seguida, pensar que sou uma fracota e questionar-me sobre como há-de ser quando um filho tiver uma dor de barriga ou esfolar um joelho. Oh, céus, fico logo com engulhos na barriga.

Estar sempre a pensar os assuntos é cansativo, mas faz parte do meu modo de ser e, como já disse, acho que é mesmo uma obrigação de um candidato à adopção. E se um assunto se nos atravessa a mente devemos aproveitar o exercício. Eu faço-o. E porque sou uma pessoa comum e saudável, umas vezes faço-o bem e pertinentemente e, outras vezes faço-o mal e impertinentemente. E continuo a fazê-o porque tenho de saber aquilo para o que estou preparada. Embora nunca saibamos para o que estamos preparados. Chamemos-lhe, então, reconhecer o nosso potencial -  o estofo.

Imagino que me digam que pensar que vou ficar muito limitada para o que for, incluindo a actividade profissional, nos dias em que um filho tiver uma dor de barriga ou esfolar um joelho (oh, céus!) é um receio normal, transversal a todas as mães e pais e que depois tudo fluirá. Mas eu juro que tenho algumas dúvidas sobre a minha capacidade para não ficar derreada. A questão é que este não é um daqueles limites que me fazem achar que não deva prosseguir com o processo de adopção. Há aquela parte de mim que diz que se os outros conseguem eu também hei-de conseguir. Venham daí as dores de barriga e os joelhos esfolados.
Oh, céus.

Cipreste

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O enxoval.

Percebo que a minha vida tem sido muito feita de enxovais que não chegam a ir com a noiva. Nesta óbvia distorção do ditado popular, o que eu quero dizer é que, não obstante ter alcançado muitos objectivos nos últimos anos, outros houve que ficaram pelo caminho. Por exemplo, em 2011, preparámo-nos para zarpar até às Áfricas mas acabámos por ficar. No fim, constatamos que foi muito bom não ter ido, muita coisa aconteceu que poderia ter sido mais “fatal” se não estivéssemos cá. Entretanto, falámos e lemos muito sobre a vida de emigrante em Angola, ou Moçambique ou Cabo Verde. Serviu para a nossa cultura geral, pronto. 
2012 e 2013 foram anos com grandes sonhos de gravidez e cheirinho a bebé. Também lemos muito e iniciei-me na realidade dos grupos de entre-ajuda. Escrevi um pouco, não tanto quanto pensei fazer ou, pelo menos, quanto escrevi “mentalmente”. Embora fosse muito claro para nós que as probabilidades de uma gravidez eram baixas, e porque houve equipas dispostas a sujeitar-nos a tratamentos (isto são outros quinhentos) deixamo-nos sonhar. Decidimos que não íamos ficar presos ao grande número que indicava que não iríamos alcançar o sonho e voámos por momentos. Vestimo-nos de espírito positivo. Muito se falou aqui em casa de cheirinho a bebé, de enxoval, de nomes, da probabilidade de fazer uma gravidez gemelar, etc. Sonhámos. 

A verdade é que na gestação dos sonhos acabamos por falar muito de futuro. E, sinceramente, não me interessam as máximas que sugerem que é uma perda de tempo pensar no futuro. Ele existe enquanto preparação do nosso presente, portanto, não vale a pena negá-lo. E, neste momento, o nosso grande futuro é a adopção, não há lugar a dúvidas quanto a isso. Entre a incerteza que é hoje inerente a um casal em que ambos são empregados com vínculos sem termo, nem assim conseguimos viver descansados quanto à capacidade para manter uma casa que foi comprada dentro das regras de esforço das famílias, entre a incerteza quanto à saúde dos nossos entre-queridos (e a nossa, já agora…), o bem estar do Freixo, etc., entre todas estas preocupações e vivências paira a adopção como o maior tema das nossas vidas.
Já provocámos algumas mudanças na nossa casa a contar com a adopção, mesmo compreendendo que pode ainda passar muito tempo até que esta aconteça. A parte prática do meu ser resolveu que mais vale perder tempo com determinadas alterações agora do que no momento em que subitamente nos surge uma proposta e, num instante, temos a(s) criança(s) em casa. E isto faz sonhar. E falamos muito. E verbalizamos situações hipotéticas do dia-a-dia. Sonhamos. Como não fazê-lo?

Por vezes, a parte mais magoada de mim diz-me: pára com isso. E converso comigo sobre todos os sonhos de ser mãe que já passaram por mim desde 1997 e, no limite, penso que nada disto se vai concretizar porque… nada disto se vai concretizar para mim, porque me está destinado não ser mãe. E depois choro. E depois trago-me de novo à razão e explico-me que também tenho uma palavra a dizer em relação ao meu destino. E volto a acreditar e desculpabilizo-me por querer fazer um enxoval.

A verdade é que há muito passado neste sonho e, por vezes, é preciso fazer um grande exercício para não deixar que as derrotas residam no presente (e que tomem conta dele). E assim se cumpre a luta do bem-querer. É preciso que não nos esqueçamos, e mesmo quando nos distraímos é preciso regressar depressa ao presente e às pessoas que junto connosco estão a construir os dias.

O tempo é um grande fantasma, mas não vejo como não viver com ele porque, por um lado, há coisas que nunca quero esquecer e, por outro, nada faz mais sentido do que sonhar com os meus filhos e fazer-lhes o enxoval.

Já temos:

- 2 fronhas bordadas a dizer “good night” - sim, também vamos ser anglófonos

- as 2 mantas-mais-fofinhas-do-mundo - são as prendas do Natal 2013 do pai e da mãe

- um mocho - feito pela tia Ana que o deu à mãe mas que a mãe já pôs no nosso quarto

- e hoje a mãe vai comprar duas molduras iguais às dos avós e das tias, uma cá para casa e outra para o Freixo - para pôr a nossa primeira fotografia


Cipreste

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Vamos falar disto.

Dentre os meus amigos e conhecidos, quem esteja mais ou menos atento, já terá percebido que tenho dado alguns passos para sair do armário.
Ou seja, tanto andei que arranjei coragem para dar a cara: OLÁ, O MEU NOME É CIPRESTE E SOU PORTADORA DE ENDOMETRIOSE.

Trata-se de uma doença que me tem tomado alguns dos dias… desde os meus 14 anos.
Fui diagnosticada pelo 4º médico a quem me queixei, aos 27 anos (13 anos depois  do início dos sintomas!). Fui operada. E fui ignorante porque não procurei mais informação na altura, pensei que estava curada. Mas não. Tudo voltou. Hoje, às portas de fazer 40 anos, continuo com muitos dias marcados por esta malvada.

Muito há a dizer sobre a vida com endometriose.

Não nos olhem com pena, mas façam-nos um favor: ajudem a passar a palavra.
Porque CHEGA de deixar esta doença passar impune.
CHEGA de ouvir alguns médicos ainda da idade das trevas dizer-nos que é normal ter dores.
Aos que quiserem, e puderem, venham caminhar comigo no dia 13 de Março.

Não sei dizer grandes coisas sobre isto. Deixa-me sem palavras.

Não esqueçam o meu pedido: passem palavra.

Vamos falar disto.
Obrigada.

 

Fico com o meu sonho.

e-mail: geral.mulherendo@gmail.com 
Youtube: ver canal 
Facebook: ver página 
Twitter: @MulherEndo 
Instagram: ver fotos 
Google+: ver página 
Skype: mulherendo



Cipreste

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

(ritos de passagem)

Nada mais perfeito do que uma casa enfeitada de natal com uma caixinha de música a tocar durante a vida vazia de filhos. Digo: nada mais perfeito para espiar a ferida de uma não-mãe.
Estou a dias de completar 40 anos. Programei-me com mestria para estas construções culturais. Datas, marcos, lugares, cheiros. Aceito-os, não os renego, não sou, no entanto, dramática em relação aos mesmos. Assumi há já algum tempo que sou assim, evoco estas coisas, é uma característica como qualquer outra. As décadas: Gostei muito de fazer 30 anos, foi no final de um ano muito duro para mim, aquele em que recomecei a minha vida numa cidade onde não tinha amigos nem família, apenas trabalho. O ano seguinte a um divórcio, com uma mala cheia de lutos por fazer.
Ainda que com alguns golpes por sarar, senti os meus 30 como uma vitória. Foi um dia feliz passado com aqueles que amo, e que me amam.
Há dias decidi que quero fazer uma festa para celebrar os 40. E assim será. Mas não vou fingir que entro nesta época natalícia com o coração incólume. Não, não vou fingir.
Fechou-se uma porta. E eu tranquei-a.

Nunca hei-de gerar um filho dentro de mim. Nunca hei-de ver o meu corpo transformar-se. Nunca hei-de ser abordada pelos que me amam a abraçar-me a barriga, a fazer promessas para dentro dela. Nunca hei-de parir. Com dor ou sem ela. Nunca hei-de parir. Nunca hei-de ter um bebé em cima de mim, acabado de nascer e eu cheia de lágrimas de felicidade por receber esse sentimento misterioso. Nunca hei-de ter as entranhas atravessadas por águas de dar à luz. Nunca hei-de dar de mamar ao meu filho. Nunca hei-de ter o meu bebé nos braços, adormecido, aconchegado, consolado. Nunca hei-de ouvir o riso dobrado do meu bebé. Nunca.

Tenho de encontrar um lugar onde sepultar este sonho. Os médicos, sábios, propõem que coloque na mesma cova o meu útero e os meus ovários. E fico eu, para lamber esta ferida. Oiço música triste. Enquanto choro, deixo acesas as luzes da árvore de natal.
Eis que esta luta se metamorfoseia agora num luto.

 

(procurar o chão, quando o "you" em "fix you" somos nós próprios)


When you lose something you cannot replace
Tears stream down your face



Cipreste

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Ajuda

(publicado inicialmente no facebook)


Acto de auxílio é uma das definições desta palavra.
Não sendo uma pessoa crente numa entidade superior única, sou crente no bem-querer entre as pessoas. E aqui entra uma expressão-chave: entre.
Tenho pensado muito sobre este assunto nos últimos tempos, um pouco mais nos últimos 3 anos. Muita água tem passado debaixo da minha ponte. Alguns sustos e aflições.
Vou juntando as expressões para esta reflexão: ajuda; entre; e escrita.
É de escrita que também quero falar. Escrita e leitura - suas necessidades e eventuais utilizações (que é como quem diz da serventia). E do fenómeno dos livros de auto-ajuda.
Conheço poucas pessoas que admitam ler livros de auto-ajuda e vejo lógica nisso, já vou explicar a razão.

Antes, quero dizer que, vivendo uma “condição” específica  há muito tempo, no último ano encontrei ajuda além da habitual (família, amigos, colegas de trabalho, etc.) nessa coisa que um dia pareceu tão distante de mim: os grupos de entre-ajuda. Sim, a partilha das nossas dores e receios com perfeitos estranhos. Ou deverei dizer estranhos perfeitos? Sim, isso.
Aprendi mais umas lições. A primeira (a velha lição) foi sobre não negar à partida uma ciência que se desconhece.
Não me vou alongar sobre o que ganhei por me abrir a mais uma dimensão das relações humanas. É tudo demasiado óbvio para mim, e compreendo que possa parecer demasiado obscuro para quem nunca o praticou. Fiquemo-nos nas nossas realidades se assim for mais confortável. Está tudo bem.

E volto às expressões que juntei para este texto e à auto-ajuda.
Ontem, encontrei um livro na caixa de correio. Já o encomendara no dia 04 pelo que a ansiedade de o receber estava já sossegada. Trata-se de um livro escrito na primeira pessoa por alguém que vive uma condição parecida com a minha. Digo parecida porque todas as histórias são diferentes, obviamente. Entrei em casa e li logo as 2 ou 3 páginas iniciais. Hoje, tenho estado a fazer tarefas soltas entre as quais pego no livro amiúde e vou lendo uma página de cada vez. Gostava de ficar a lê-lo de seguida, mas compromissos do coração falam mais alto.
Porém, tive de vir aqui partilhar uma série de sentimentos que têm brotado ao longo das parcas páginas que já li. Sim, sentimentos por vezes acompanhados de uma lagrimita, mas não, não é um livro de emoções-instantâneas e posso dizer que está muito bem escrito por uma pessoa que se revela muito inteligente.

Adiante. As ideias que desejo partilhar são as seguintes:

- Vale a pena entrar, nem que seja muito devagarinho, no mundo da entre-ajuda. Não estou, de todo, a desvalorizar o papel da restante rede de apoio (expressão feíota, eu sei, mas acho que é a que define melhor). Nem sequer estou a dizer que, na minha experiência, uma das dimensões onde vou encontrar alento é melhor do que a outra. São diferentes, ponto. E, vou contar-vos… esta menina tem-se surpreendido muito a cada passo na entre-ajuda. E, até agora, só ganhei.

- Penso que percebo agora porque é que a auto-ajuda pode ser algo falacioso: é auto e não entre. Duh! Não querendo ajuizar quem se faz valer da auto-ajuda, penso que é apenas mais uma forma de estar virado sobre si próprio. E um dos riscos de estarmos sempre virados para o espelho é precisamente a oferta limitada de visões que essa perspectiva oferece. Há que viajar e ver outras realidades, nem que sejam viagens pela net que foi onde encontrei o “meu” grupo de entre-ajuda.

- Sobre a leitura: fico sempre tão aparvalhada quando leio outras pessoas a descreverem na perfeição episódios que eu vivi. Estou a falar de livros que fazem partilha de experiências, e entra aqui uma grande diferença: não são livros de entre-ajuda, são de partilha, isso, apenas isso. Porque estamos a falar de leitura e de humanos que escrevem e não de génios - seres superiores e infalíveis. Ninguém pode pensar que vai ajudar alguém através de um livro. Não compreendo a ajuda como algo que acontece de forma unidireccional. E a leitura é-o. A leitura é um acto numa só direcção. E a escrita também. Por isso mesmo a diferença que refiro. O máximo que pode acontecer é eu ligar peças ao ler um livro de partilha e, a partir daí, tornar esse corolário em algo útil. Não quero, com isto, dizer que não nos possamos sentir gratos a quem escreveu.

Estarei a fazer sentido?

O que quero aqui dizer, e talvez fosse desnecessário o texto acima(?), é que, quando vivemos situações específicas que requerem alguma resiliência  para não se andar por aí a mal-dizer a vida, há ajudas. Não estamos sozinhos. E eu acho que é tão importante saber que não estamos sozinhos. Não que desejemos aflições às outras pessoas, mas porque sabemos que, de facto, shit happens e não é só a nós. Então, porque não nos aproximarmos um pouco (pode ser à laia de raposa) para observarmos como convivem outras pessoas com o mesmo tipo de situações?
Porque não? Porque somos muito ciosos da nossa privacidade? Ok, legítimo. Mas depois não me venham cá dizer que a privacidade é um lugar muito só. Vou começar por explicar que acho que a privacidade pode ser muito mais do que aquilo que pensamos ser um segredo bem guardado. E que, a cada camada da nossa privacidade que revelamos, estará lá outra a formar-se. E que não vamos deixar de ser únicos porque levantámos o véu de algo que, afinal, não nos é exclusivo. E acresce que, nos tempos que correm, nem sequer temos de o fazer revelando a nossa identidade ;)
Enfim, se me disserem que gostam de se considerar uma espécie de eremitas, então não percebo porque é que ainda estão a ler este texto :)

Finalizo confessando que tenho pensado muito em escrever sobre as minhas vivências, em formato de blog, apenas ainda não consegui resolver que grau de identificação da minha pessoa é que quero revelar. A decisão não é linear, é de tipo pau-de-dois-bicos, mas hei-de lá chegar. Porque, noutros contextos, já tive a oportunidade de saber que a partilha de algumas situações nos pode permitir a abertura de horizontes. E porque gosto de escrever. E porque me faz sentido que utilize a escrita para além da poesia. Ou antes, porque a entre-ajuda tem muito de poético. Vá, chamem-me fatela. Eu chamo-lhe uma espécie de entre-auto-ajuda ;)

Reli o texto e ainda não percebi se só fará sentido a mim.
Enfim, hoje sinto-me muito grata e quis partilhar estas ideias soltas.
Clique-se no botão “publicar”.



Cipreste

domingo, 3 de novembro de 2013

(música para ritos de passagem)

O momento em que percebemos que uma luta passa a ser um luto. 

 For now 
 Leaving point despair 
Leaving point hope 

 Getting lost to find a way back home 
Getting back by letting go

 



Cipreste

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Quem vê caras, não vê corações.

Diz um daqueles memes partilhados nos murais das redes sociais que a partilha da nossa história é uma obrigação. Que, quando nos assumimos e revelamos as nossas histórias, nos estamos a curar e a ajudar outros a fazê-lo. Ora, não sou assim tão ambiciosa.
Antes de mais, há muito tempo que deixei de pensar que tenho de me curar da minha história, ela é o que é, não vale a pena imaginar máquinas do tempo. nunca me vou curar dos meus arrependimentos, porque são isso mesmo: arrependimentos. Eu cometi erros e esses erros tiveram consequências nas vidas de outras pessoas. E na minha. Oh céus, e na minha vida.




Cipreste

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

escrever, apagar, reescrever, apagar de novo

Tenho tantas coisas para dizer, mas falta saber escrever o que nunca vai estar resolvido. 
Falta saber escrever aquele que não é o momento brilhante da minha vida, com um preço pago por  mim e por terceiros, inocentes.




Cipreste

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

coragem & medo [uma amiga ~ um blog]

Mais uma experiência: um blog em língua inglesa, a convite de uma amiga de infância.
Irei deixando os posts à medida que saem.


  OH INFERTILITY!

Hello, my name is S. I’m married to the-best-guy-ever and have a stepson who is the-best-stepson-ever. I have a great life – my dream job, a loving family and friends, a lot of hobbies. But, I always have spare time for one more hobby. I have been fighting infertility for some time now. It seems that I want to stop having spare time. You know, I have my cake, but the cherry is missing. 

________________________

COURAGE & FEAR

How much courage does one need to decide to have a child?

Why should one have a baby? What’s the point in bringing a child to this crazy, violent, hostile world? Really, why should one even consider all the trouble around having the risk to love someone like it hurts, more than you ever thought you could bear(I heard it’s something like that), and know that this will be the most important dimension of your life ‘til the day you die? The only answer I am able to articulate is: Yes, I want a child.
I really like my life. Okay, it could better, but then again… it could always be better.
I’m married to this guy who is the-best-guy-ever. He not only reads poetry, he even writes poetry. Ha! And may I say it’s not junk poetry, it’s good stuff.
He loves me so.
And I love him so.
And we have a cat.
Yup, we have one of those. Of course I’d also love to have a dog, but it’s much more work than I am up to. Uh, wait, we have a point here: she’s not up to all the work around a dog but she’s considering having a kid? Oh boy.
Just kidding, we’re not going to compare having a child with having a pet. Different desires for different commitments. And there is nothing more to say about that.
So, I want to have a child. Since 1997. (You may now imagine one of those “established” signs.) Yes, since 1997. Or may I say since ever? I’m one of those freaks whom always thought was born to nurse babies, many babies. Here we are, the year of 2013, and I am still not a mother, no one calls me mom. Imagine: I could have a whole teenager!
My story: At first, I found out that my body was in trouble (you’re likely wondering ”why doesn’t she just adopt?”, let’s leave that for another day), then my life was in trouble, after that my head was in trouble and then years just went by (hiding fromthe fear).
Going back to the initial query, how much courage does one need to decide to have a child? And fast forward, how much courage does one need to have to go under treatment(s) to have a child? I think I’ll never be able to answer this question, or maybe the question is just wrong, I don’t know. I guess that the only possible explanation is the “sudden moment snap” theory (not my theory but I named it). So, the “sudden moment snap” theory consists of taking months (or even years) to try to decide on something. For example, you consult friends or even get professional guidance, you write down pros and cons lists and one day while you are putting away your groceries you suddenly snap and the decision is made. That’s it, no more reflections about it. The decision is made and you feel this is the point of no return.
It is. There is no going back to who you were before deciding you want to bring a child to this world. A child whom you are willing to love with all of your strength and forever fear for their welfare. Til-the-day-you-die.
There is actually no return from the day you decide that you want to have a child. From that day on, you want your body to change, you want to give birth no matter how much it frightens you, you want to hold one of those little creatures in your arms and think “oh, look at him/her, he/she is mine, from me, from my love with this wonderful man” and all those silly thoughts that make you feel at ease with the earth. You want it all, you are even willing to loose your sleep and (what the heck!) you are willing to let go of your “peace of mind” and “freedom”.
I guess that by now you’ve speculated why am I mentioning so many hypothetical moods and feelings about motherhood. You know… when you have 15 years to live in the “when/what if” stage, you collect many examples and wonder about them, sometimes you even think you may picture how it is. It’s only a wide range of imagery working in your brain together with your dreams. Still it does hurt in your chest, because no matter how much you dream (day & night) nor how much you do it all according to the books, you don’t get it.
You just don’t get it.
Maybe it is not written in the stars for you. You had forgotten that things don’t come easy for you. Why should a baby be something natural? Before you get to be presented with all those worries and dirty diapers, you have to pass a few tests. And still, Madame, we don’t guarantee you’ll get it.
That is infertility, ladies and gentlemen. That is what separates me from what seems like the rest of the world. Infertility is what causes me to live in non-stop-existentialism-town. I just don’t get it. I was supposed to have a little doubt, then decide, have some nice sex and see the red lines in the pregnancy test. But no, the universe has higher plans for me. I’m special so I’ve been chosen to go through this anguish. It is a prize, you know. I get to go to all of these different doctors and hospitals and go through all these tests. I even get to inject myself. I’m a society-tolerated junkie. I’m a piece of meat. I’m a leg-spreaded guinea pig. I know it’s not nice but at the least it is the truth. I’m impotent. I’m my mommy’s hurt little girl.
Life has denied me, and so many women and men, something life itself taught us would be ours naturally and I am afraid I don’t know how to put it into words for you to ever understand. I have tried so many times. I don’t know how to tell you what it is like to live with this absence. One thing I may say is that, even if you don’t know what to say to your infertile friend, your friendship and empathy are welcome.
And that is what I’ve been living with – Infertility and trying to keep things in perspective. With a little help from my friends, just like The Beatles.
If you recall, earlier I said I really like my life. And I do. I am very happy. I have my cake, but the cherry is missing. So, as much as it hurts, I smile and laugh everyday. And I don’t run away from my devilish fertile family and friends. I also find myself checking my friend’s baby website everyday and even commenting on things. And one day she asks me if I want to share my infertility experience with you. And I’m all like, “Hellooo, I’m your babyless friend and this is a baby website.”. And here I am, starting round two of InVitro Fertilization next month. Hello.


Cipreste