Mostrar mensagens com a etiqueta opinionated. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta opinionated. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Temas fracturantes: onde a porca torce o rabo

(e o gosto de conversar, pelo que o post é muito longo e provavelmente inútil o tempo gasto a lê-lo)

Não foi há muitos anos que encontrei uma forma instantânea para me solucionar dúvidas nos temas fracturantes da sociedade.

Despenalização do aborto. Adopção por casais do mesmo sexo. Doação de gâmetas e o direito da pessoa a saber a verdade sobre a sua origem genética. Eutanásia. O cartaz do Bloco de Esquerda. Etc.

Estes assuntos são tão complexos que devemos sempre desconfiar de soluções instantâneas. Não usei a expressão acima para depois me contradizer como um truque de escrita para atrair a atenção de quem lê. A contradição está lá, ela existe. É verdade que, em determinados assuntos, uso da fórmula instantânea.

~
Antes de avançar, gostaria de sublinhar três coisas:

- Não aceito a realização de referendos para a legislação de direitos individuais

- Acho que se deve dar lugar à discussão pública pelas entidades competentes e que esta, aliás, deve ser renovada amiúde e não apenas para o momento legislativo

- Acho que concordamos todos que estes temas são complexos. O facto de termos opinião sobre eles não quer dizer que os tratemos de forma leviana. Lamento que alguém encete uma discussão e que a arrume para canto confundindo o desejo de não continuar a discussão com a conclusão típica da complexidade do assunto e da sua privacidade.
~



As sociedades tendem à mudança. Aquilo em que se acreditava e que se advogava há 100 anos é muito diferente dos dias de hoje. Aliás, não precisamos de ir tão longe, o nosso país é um bom exemplo com o antes e o após a ditadura. E não esqueçamos que estou a falar do mundo ocidental com todas as diferenças dentro do mesmo (por exemplo, a pena de morte que ainda é muito real em tantos países do ocidente) e que existem fenómenos para nós arcaicos que são prática corrente em tantos outros países do “resto do mundo”. (só para registo: detesto esta distinção entre “ocidental” e “resto do mundo” mas não tenho agora tempo para ser menos “estereotipante”)


Quando uso as expressões “acreditava” e “advogava” estou a fazê-lo para distinguir aquilo que cada pessoa acredita para si daquilo que fica legislado. Isto é importante.


Ao afirmar acima que não foi há muitos anos que encontrei a forma instantânea de me solucionar nos temas fracturantes da sociedade o que quero dizer é que, tenho reparado que a chave para uma “solução” mais imediata para estas dúvidas está no lugar da discussão em que uma parte das pessoas recua.
Vou tentar explicar-me com exemplos.


Despenalização do aborto

Eu acho que somos todos contra o aborto e pró-vida. Aliás, acho a utilização da designação pró-vida por parte dos grupos contra a despenalização uma apropriação indevida do termo.

 A questão que se coloca não é se a pessoa é a favor do aborto, a questão que se coloca é a da sua despenalização e consequente abertura de condições para que seja realizado condignamente. Podia explorar agora o facto de que o aborto existe desde sempre etc., etc., mas não é aí que quero ir, eu quero ir à “solução instantânea”.
Eu acho que as pessoas se enredam nos milhentos argumentos emocionais e esquecem-se de se questionar sobre o significado de cada lado do tema.

Repare-se: se sou contra a despenalização do aborto isso quer dizer que sou a favor da sua penalização. Portanto, penso que a mulher que cometer aborto deverá ser penalizada legalmente (Coima? Prisão?) e, consequentemente, sou contra haver condições de saúde pública para que o façam em segurança. Não resolvo o fenómeno da existência do aborto na minha sociedade nem resolvo a consciência daqueles que praticam ou irão praticar o aborto. A única coisa que faço é permitir que se continue a fazer abortos em condições degradantes (mais toda a economia paralela do aborto) e que essas pessoas sejam punidas legalmente.

Afinal, o que houve de instantâneo aqui? O seguinte raciocínio: se sou contra a despenalização do aborto > sou a favor da sua penalização  > penso que a mulher que cometer aborto deverá ser penalizada legalmente (Coima? Prisão?) > e sou contra haver condições de saúde pública para que o façam em segurança.

É bem certo que o exercício, para ser intelectualmente honesto, deverá ser feito no sentido inverso. Vejamos o que me acontece: se penso que a mulher que cometer aborto não deverá ser penalizada legalmente  e se, reconhecendo que o aborto existe, sou a favor de haver condições de saúde pública para que o façam em segurança  > sou a favor da despenalização do aborto > sou a favor da sua legalização.

Agora questionam-me se a liberalização (sim, acabei de comparar despenalização com liberalização) não trará a sua vulgarização. O que traz a liberalização do aborto são outros quinhentos e os resultados estão à vista, lá está, com as sociedades ocidentais a tenderem todas para a liberalização. Bem, ninguém disse que o tema é simples, pelo contrário, assumi logo a sua complexidade. Não tenho respostas para tudo (ainda bem, senão era apenas uma idiota que pensava ter respostas para tudo). Sou apenas uma parva que pensa muitas coisas e que acaba a escrever sobre elas. E sei apenas que prefiro a segunda equação à primeira. Não desejo que ninguém vá para a prisão por ter feito um aborto e muito menos que morra por o ter feito fora das condições clínicas necessárias para o fazer.
Quando discuto isto com alguém que seja contra a despenalização, este é o momento em que a pessoa vai embora ou põe um ponto final no assunto. Até hoje, não conversei directamente com uma pessoa que me assumisse que sendo contra a despenalização do aborto > logo, é a favor da sua penalização  > e que portanto pensa que a mulher que cometer aborto deverá ser penalizada legalmente (Coima? Prisão?) > e que é contra haver condições de saúde pública para que o façam em segurança.


Adopção por casais do mesmo sexo

Eu acho que estamos todos de acordo que crescer numa instituição não é melhor do que crescer numa família com amor. A questão que se coloca para lá dos direitos das pessoas homossexuais é esta. É do interesse da criança que falamos e não dos adultos, um interesse superior, portanto.

Repare-se: se sou contra a adopção por casais do mesmo sexo isso quer dizer que sou a favor que as crianças continuem institucionalizadas ao invés de serem adoptadas. Portanto, penso que a criança está melhor numa instituição do que no seio de uma família devido à orientação sexual dos pais (ou mães). Uso, por exemplo, a velha deixa da possibilidade da criança ficar traumatizada por ser gozada na escola por ter dois pais (ou duas mães). Imaginemos a cena: a criança adoptada por pais do mesmo sexo é gozada por causa disso e vai para casa, chora, os pais conversam com ela, acarinham-na e ensinam-lhe que o mundo é mesmo assim - injusto e reactivo a tudo o que é diferente de si, à noite, são estes pais que aconchegam esta criança; a criança institucionalizada também anda na escola, é gozada porque é institucionalizada/gorda/magra/clara/escura/inteligente/o-que-desejarem e vai para “casa”, chora, com sorte (muita) uma das funcionárias tem 5 minutos para falar consigo, com sorte essa funcionária acarinha-a e diz-lhe que o mundo é mesmo assim - injusto e reactivo a tudo o que é diferente de si, à noite, não é esta funcionária que aconchega e acarinha esta criança porque já acabou o seu turno. Faz todo o sentido proteger as crianças de serem gozadas, sim senhor. Prefiro, portanto, que a criança cresça sem o amor e a protecção de dois pais (ou duas mães) convencida de que a estou a proteger de vir a ser gozada.

O que traz a adopção por casais do mesmo sexo não me preocupa porque sempre houve crianças a serem criadas por casais do mesmo sexo.

Afinal, o que houve de instantâneo aqui? O raciocínio: se sou contra a adopção por casais do mesmo sexo > sou a favor da institucionalização das crianças mesmo que haja um casal que a queria adoptar.

É bem certo que o exercício, para ser intelectualmente honesto, deverá ser feito no sentido inverso. Vejamos o que me acontece: se não sou a favor da institucionalização das crianças havendo quem que as queria adoptar, amar e criar > sou a favor da adopção por casais do mesmo sexo.

Bem sei que acima ilustrei de forma aparentemente leve as preocupações que as pessoas “contra” têm, desde o trauma à leitura bíblica apelidada errada e convenientemente de biologia. Mas estou antes a falar do imediato família-instituição. Agora questionam-me sobre a passagem de casais do mesmo sexo à frente de casais de sexos diferentes nas listas para a adopção. Bom, o problema é o mesmo que o das adopções individuais. Uma vez mais, ninguém disse que o tema é simples, pelo contrário blábláblá. Seja como for, prefiro a segunda equação à primeira. Não desejo que nenhuma criança cresça numa instituição se houver quem a deseje e saiba amá-la.

Quando discuto isto com alguém que seja contra a adopção por casais do mesmo sexo, este é o momento em que a pessoa vai embora ou põe um ponto final no assunto. Até hoje, não conversei directamente com uma pessoa que me assumisse que se é contra a adopção por casais do mesmo sexo > está a ser a favor da institucionalização das crianças mesmo que haja um casal que a queria adoptar.


Doação de gâmetas e o direito da pessoa a saber a verdade sobre a sua origem genética

Eu acho que estamos todos de acordo que temos direito a saber tudo o que envolve a nossa existência. Acho.

Compreendo e sou a favor da procriação medicamente assistida através da doação de gâmetas e admiro muito as pessoas que a ela recorrem. Mas não lhes reconheço o direito de decidir ocultar esse facto à pessoa que nasce de tal processo.

Imaginemos a cena: a decisão de “contar ou não contar” cabe aos pais, os pais não contam, um dia o filho acaba por saber e agora? Não se iludam, muito provavelmente qualquer dia há testes genéticos na farmácia e esse filho que um dia foi só um bebé, cresce e forma opiniões, nomeadamente sobre a sua vida, mas a situação descrita não o contempla como senhor da sua verdade.

Afinal, o que houve de instantâneo aqui? O raciocínio: sou a favor de que a decisão de “contar ou não contar” cabe aos pais > sou a favor de esconder a verdade à pessoa (o bebé cresce, um dia há-de ser um adulto como os pais o foram na hora da decisão de ocultar) sobre a sua história > sou a favor de que tenho mais direito à história de vida do meu filho do que ele > sou a favor de que tenho mais direitos do que o meu filho.
Hum?! Pois. E sou grata a quem me venha mostrar onde estou errada no raciocínio.

É bem certo que o exercício, para ser intelectualmente honesto, deverá ser feito no sentido inverso. Vejamos o que me acontece: se sou a favor de que o meu filho tem tantos direitos individuais como eu > se sou a favor de que tenho tanto (ou menos) direito à história de vida do meu filho do que ele > sou a favor de ter de dizer a verdade à pessoa sobre a sua história >  sou a favor de que a decisão de “contar ou não contar” não cabe aos pais.

A situação é difícil e acredito que a gestão do “contar” não seja fácil de fazer. Quando? Com que idade? E depois? Com que preço? Etc. Mas não é este facto que deverá tolher o tema, uma vez mais, são questões que ficam em segundo plano. Questões muito pertinentes, é certo, mas não estão no primeiro plano de interesse. Pois, aqui, o que se discute é o direito à verdade.


Eutanásia

Eu acho que todos temos o direito de decidir como desejamos levar a nossa vida, uma vez que não implique maleficência a outros.

Compreendo e sou a favor da medicina procurar prolongar a vida, nomeadamente da evolução dos cuidados continuados e especificamente no controlo da dor. Compreendo que a avaliação de cada caso é uma tarefa muito completa e que exige muita competência e parcimónia por parte dos envolvidos. Não sou a favor de manter as pessoas vivas contra a sua própria vontade, nomeadamente situações de introdução forçada de sondas nasogástricas, por exemplo. Acredito na morte assistida, acredito que a pessoa que deixe de ter condições físicas para terminar a sua vida possa ainda ter algum recurso para o fazer. Mas escapa-me tudo o resto, não consigo avançar e também me escapa completamente a forma como isto tudo deve e possa ser feito. É para mim, dentre os temas fracturantes, dos mais complexos.

Continuando no meu registo de pensante simplória, acho que o facto de haver possibilidade legal de alguém acabar com a vida de outrem extravasa os temas que referi acima. Acabar com a vida de uma pessoa não é, para mim, o mesmo que acabar com a vida de um feto, por exemplo.

Não consigo fazer aqui um raciocínio instantâneo. Fico sossegadita no meu canto, apanho uma opinião aqui, outra ali e leio, mas não me consigo solucionar além do “eu acho que a pessoa tem direito e deveria ter forma de obter ajuda”. Apesar disso, não consigo tecer mais considerações e, no mínimo, magoa-me e assusta-me a hipótese de tal tema vir a ser alvo de consulta popular.


O cartaz do Bloco de Esquerda

Ná, não estou nem aí, foi só uma provocaçãozinha :)



~

Na verdade, este texto surgiu num momento em que me senti um pouco frustrada com a fuga que se costuma ver neste tipo de discussões. Uso muitas vezes este tipo de raciocínio, da solução instantânea como lhe resolvi chamar hoje e acho que acabo por ser interpretada como querendo argumentar até à evangelização do outro. Talvez as pessoas pensem que estou a ser leviana ao querer ir por partes. Talvez seja apenas uma impressão errada, ou talvez sejam complexos por ser tão faladora e cheia de opiniões.

Fui opiniativa desde muito pequenina. Em 1999, num reencontro após 18 anos, um amigo de infância, cerca de 7 ou 8  anos mais velho do que eu, numa conversa à volta de um belo almoço diz “Ah, mas a Cipreste tinha 4 anos e já era muito cheia de opiniões”. Ele disse isto com graça, sem qualquer tom de censura. Lembro-me de ter uma daquelas sensações de que tudo parou naquele momento. Afinal, eu sempre fora assim. Ele usou a expressão em inglês “opinionated”. Caramba, nunca tinha pensado nisto. Quer dizer, era evidente para mim que sempre fui muito conversadora e curiosa, formando opiniões sobre os mais variados assuntos, mas não tinha consciência de o ser desde sempre, de ser parte da minha essência.

Se não estivermos de bem com as nossas opiniões e respectivas dúvidas, se não estivermos conscientes de que estas são dinâmicas, pode ser difícil ser-se assim. Há uma facção da sociedade que trata os opinionated como uns chatos, com exclamações de género “lá vens tu com as tuas opiniões”. É verdade que as pessoas com o meu perfil, se não tiverem muito jeito para a diplomacia, podem ser conotadas como tal. Ora, não lamento e não peço desculpa por pensar e construir ideias e, o escândalo, querer discuti-las. Lamento, no entanto, quando as pessoas saem de fininho, tenho pena e claro que tento rever se foi a minha postura e não o assunto em si.

Um dos únicos confortos que encontro nestas reflexões e discussões é que as minhas ficam-se só por aí. Não faço parte de qualquer grupo legislador porque isto tudo vai muito além dos raciocínios instantâneos e é a partir daí que a porca torce o rabo e eu fico aflita só de imaginar que são pessoas como eu que podem vir a definir o caminho a tomar nestes temas, se consultados através de referendo.
E fico confusa muitas vezes pois grande parte dessas mesmas pessoas que preferem chutar para o canto a discussão de determinado tema são as que não se incomodam que o tema seja referendado. É estranho, não é? Ou então é só impressão minha.


Olá, o fim-de-semana foi bom?
Cipreste