Mostrar mensagens com a etiqueta livros. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta livros. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 4 de março de 2016

a ridícula ideia disso

Por altura do falecimento do meu pai, saiu em Portugal o livro A Rídicula Ideia de Não Voltar a Ver-te de Rosa Montero. Já tinha lido artigos dela mas nunca tinha lido um livro. Tinha-a ouvido uma vez no Correntes de Escritas (não, não sou uma fã-arranca-cabelos, fui lá duas vezes, gostei e bastou-me) e gostei muito dela, do seu olhar, da sua doçura, da sua inteligência. Fiquei com a nota mental para a ler. Foi o primeiro livro que li sem o meu pai. (todos fazemos exercícios das primeiras vezes)

Fiquei boquiaberta quando vi o livro, quando li o seu título.
Obrigou-me a lê-lo porque, de facto, a ideia de não voltar a ver o meu pai é das coisas mais ridículas da minha existência.

Gostei bastante, acresce o que aprendi sobre Madame Curie e a certeza de ser uma feminista. Eu até podia ter-me sentido defraudada pelo miolo do livro o que não interessaria para nada. Bastava ter comprado um livro em branco com a capa deste (foto incluída, que é muito boa) e sentir-me-ia uma cliente satisfeita. O título vale o preço do livro. O título serviu-me para horas de solidão neste enigma que é o presente sem o meu pai, a ideia de futuro sem o meu pai. O título vale que o livro seja levado para o café e que fiquemos ali a mirá-lo como quem está a ler a sua vida para trás por causa da tal ideia ridícula. 

O título vale-me pela ideia de prisão perpétua num instante, que não conseguimos definir no tempo, quando nos encontramos de luto. E eu acho que estamos de luto para sempre quando alguém que nos é querido parte, porque também é para sempre. E não, não falo do período de nojo que consta nos dicionários. E não, não estou a falar das fases do luto, nem de Kubler-Ross nem de outros. Embora fale de um momento, de um instante, refiro-o como algo contínuo e ininterrupto, porque se trata de “Não Voltar a Ver-te” da “Rídicula Ideia” disso. E isso nunca há-de passar. A menos que nos voltemos a ver.

Ali estamos e repetimos em voz baixa “A Rídicula Ideia de Não Voltar a Ver-te”, a ver se somos apanhados por alguém que nos pergunte “o que disseste?”. E nós respondemos “nada, nada” e voltamos a repetir “A Rídicula Ideia de Não Voltar a Ver-te”. O meu cérebro costuma fazer umas ligações que nem sempre consigo explicar, por exemplo, ilustro mentalmente este momento com a memória desta cena do enorme filme Big Fish:



Mas eu não vinha cá falar deste livro, vinha falar daquele que estou a ler agora: O Ano do Pensamento Mágico de Joan Didion.

Bru-tal. 

Às vezes, dá-me vontade de dizer palavrões, outras vezes, obriga-me a gargalhadas. A sério, há dias estava num café com a Magnólia, ela estudava e eu lia, e dei uma gargalhada que cortou ali o ar de forma um pouco inusitada. Uns segundos depois estava com os olhos marejados de lágrimas.

Não vou fazer de spoiler, achei apenas que era minha obrigação vir fazer a recomendação do livro. Foi-me aconselhado por uma amiga que perdeu o pai um ano antes de eu ter perdido o meu. A autora não me era desconhecida, mas também nunca a tinha lido. Não encontrei uma edição em Portugal, pelo que o mandei vir pelo Book Depository, em inglês. 

Bastou-me esta citação dela, encontrada na internet quando a pesquisei, para me convencer de que nos iríamos dar bem: I write entirely to find out what I'm thinking, what I'm looking at, what I see and what it means. What I want and what I fear.

Tenho andado a tentar solucionar esta coisa de “fazer o luto” versus “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” e ler este livro está a ajudar-me a sentir muito acompanhada na forma de pensar (consequentemente de sentir) este sofrimento. É que, reparem, faz-me todo, todo o sentido seguir o raciocínio do pensamento mágico aliado à ridícula ideia de não voltar a ver os nossos entes queridos.

Só assim consigo começar a dar uma imagem ao meu luto.

Porque nós, os em luto, damos uma imagem ao nosso luto, não damos?
Se não. Então, como fazem? Eu faço isso, dou imagens às coisas, construo maquetes mentais. Às vezes, construo mesmo maquetes verdadeiras, chamo-lhes instalações e às vezes chego mesmo a mostrá-las publicamente.

Colocadas as coisas assim, talvez possa assumir que torno públicas as minhas dores. 

Faz tudo parte do tornar o nosso snetimento em algo concreto. Tocar no que se torna fisicamente simbólico do nosso sentir. Como a Joan Didion diz na citação acima, mas nas várias materializações, para além da escrita, ou, juntamente com a escrita - para perceber o que estou a pensar, para onde estou a olhar, o que estou a ver e o que significa. O que desejo e o que receio.

Chego sempre à conclusão de que é melhor se falarmos das coisas. Mostrar é como falar.

Não é o vício de escarafunchar, de buscar sangue numa ferida em quase total cicatrização. Não é nada disso. Uma ferida em cicatrização é outra coisa. Isto do luto é toda uma outra dimensão, para lá das feridas. Mesmo quando sobram feridas do passado às pessoas em luto.

Se ninguém fala disto anda para aí tudo a pensar que está maluco e, afinal, só estamos mas é todos a fazer essa coisa esquisita a que se dá o nome de processo. O que me encanita um bocado quando chego a esta ideia de processo é a necessidade de o compartimentar em fases e dar-lhes nomes definitivos. Digo eu, que não sou psi e não preciso dessas ferramentas, ou porque simplesmente não me consigo encaixar nas teorias que conheço (também não conheço assim tantas). 



Voltando ao livro, a citação que o marca e que está impressa a letras douradas na edição que tenho é esta: Life changes fast. Life changes in the instant. You sit down to dinner and life as you know it ends.

Parece banal, não é? Hahaha. Deixem-me rir. Not.

O pai da minha amiga teve morte súbita, de manhã foi às compras, à tarde faleceu. O meu pai teve um percurso de 14 anos de doença oncológica, com 4 tumores primários (um case study), sobreviveu a uma série de coisas contra todas as probabilidades e, mesmo assim, a morte dele aconteceu num instante. Porque agora estamos e no momento seguinte não estamos. Com 14 anos de preparação ou sem qualquer preparação. Mesmo que sejam processos diferentes, a partida, aquele instante é que marca a passagem da era sem ideias ridículas para a era com ideias ridículas.

Joan Didion, na minha interpretação, não se deixa ficar pelos factos óbvios. Volta a todos os lugares necessários. E é aqui que me sinto tão acompanhada por ela. Não se trata apenas de revisitar memórias nem tão-pouco de ficar preso no exercício “o que é que eu poderia ter feito melhor”. Trata-se de reformular todo o nosso pensamento dentro da ideia ridícula de não voltar a ver aquela pessoa. 

Por vezes, tenho vontade de fazer uma birra. Bater com os pés e dizer que não, que não é possível que  nunca mais veja o meu pai. Mas isto passa-me num instante. Ou, estou convencida de que passa e, afinal, este parlapiê todo não é senão prova disso ;)

Quando digo baixinho “A Rídicula Ideia de Não Voltar a Ver-te” estou apenas à espera da minha resposta, da minha submissão à ideia. Hoje ainda não é o dia. Ainda tenho de caminhar muito. Talvez para sempre.

Não sei se fiz algum sentido, a Joan Didion também escreve: “These people who have lost someone look naked because they think themselves invisible.” 


Deixo-vos com este excerto:

“Grief turns out to be a place none of us know until we reach it. We anticipate (we know) that someone close to us could die, but we do not look beyond the few days or weeks that immediately follow such an imagined death. We misconstrue the nature of even those few days or weeks. We might expect if the death is sudden to feel shock. We do not expect the shock to be obliterative, dislocating to both body and mind. We might expect that we will be prostrate, inconsolable, crazy with loss. We do not expect to be literally crazy, cool customers who believe that their husband is about to return and need his shoes. In the version of grief we imagine, the model will be "healing." A certain forward movement will prevail. The worst days will be the earliest days. We imagine that the moment to most severely test us will be the funeral, after which this hypothetical healing will take place. When we anticipate the funeral we wonder about failing to "get through it," rise to the occasion, exhibit the "strength" that invariably gets mentioned as the correct response to death. We anticipate needing to steel ourselves the for the moment: will I be able to greet people, will I be able to leave the scene, will I be able even to get dressed that day? We have no way of knowing that this will not be the issue. We have no way of knowing that the funeral itself will be anodyne, a kind of narcotic regression in which we are wrapped in the care of others and the gravity and meaning of the occasion. Nor can we know ahead of the fact (and here lies the heart of the difference between grief was we imagine it and grief as it is) the unending absence that follows, the void, the very opposite of meaning, the relentless succession of moments during which we will confront the experience of meaninglessness itself.” 

Uma vez mais, desculpem lá qualquer coisinha pelo tema mais sorumbático, mas temos de falar de tudo.

Até já,
Cipreste

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

must have

Orfeu de Bicicleta 

“O mundo não se divide entre Ocidente e Oriente, religiosos e tradicionalistas, mas entre pais de crianças pequenas e o restante da humanidade”, começa por escrever o autor, para quem esta classe faz parte da “categoria dos chatos provisórios”, formada por três tipos: “o bêbado, o apaixonado e os pais de recém-nascido. Só os suporta quem está no mesmo estado.” (pág. 37)

sábado, 18 de julho de 2015

ambições


Dos novos dilemas que surgem com a maternidade: fazer conviver a sofreguidão por livros de poesia com a sofreguidão por livros "infantis".


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Fazer desaguar emoções

Ontem voltei ao trabalho.
Ao final do dia, não me apeteceu apanhar o autocarro directo para casa e enfiei-me naquele que passa pelo rio. Gosto de passar na baixa de olhos pegados no rio. Não sou propriamente fã dos Ala dos Namorados, mas evoco sempre aquela passagem que diz “São os loucos de Lisboa/ Que nos fazem duvidar/ Que a Terra gira ao contrário/ E os rios nascem no mar”. Um facto sobre mim: preciso de exercitar a desconstrução constantemente.
Ontem sentia-me só. E cansada.
Dos 13 dias úteis de férias que tive (o Chaparro teve 10), passámos 5 em hospitais com familiares e os restantes a procurar transformar medos em esperança. Todos sabemos que um mal nunca vem só. É um facto sobejamente conhecido sobre as tempestades. Após 7 semanas de baixa médica, regressei ao trabalho fresca como uma alface, cheia de energia para trabalhar e boa disposição. Antes de partir para férias, cheguei até a confessar que não sentia necessidade delas. Pum. Toma lá que é para aprenderes. Na primeira semana, passámos logo 3 dias às voltas nos hospitais. Na segunda semana, deixei-vos aqui um postal de “até já”. Chegámos à praia nesse Domingo para regressar de imediato na 3ªfeira para uma nova ronda, não planeada, de hospital. Não voltámos à praia desde então, ficámos por perto uns dos outros. Encontrámos forma de nos distrair e penso que conseguimos deixar tudo mais ou menos controlado.
O Chaparro voltou ao trabalho na 2ªfeira, eu ainda fiquei longe de casa a amanhar algumas pontas soltas. O Chaparro encontrou um postal na caixa do correio para levantar uma carta registada. Regressei a casa na 4ªfeira. O Chaparro esperou por mim para irmos juntos aos CTT levantar a carta que sabíamos trazer a notícia do seu despedimento. É a crise, senhores e senhoras.

É muita coisa. Nem saberia por onde começar ao tentar explicar aquilo que, de certo, compreenderão. Os serões nesta casa têm sido ora silenciosos, ora cheios de planos e ideias para uma nova vida. Eu brinco e evoco o Primeiro-ministro deste país, cujo nome não nomeamos neste blog, e digo que temos de fazer do desemprego uma oportunidade de vida. Digo que talvez seja a hora do Chaparro mudar de vida e procurar fazer algo que o faça mais feliz, mais realizado. Depois ficamos em silêncio e não confessamos os nossos reais pensamentos um ao outro. E volto a evocar outra personalidade inominável neste blog, aquela escritora que se lamentou há tempos na imprensa por ter tido de fazer um “downsizing” no seu estilo de vida. Tento colocar algum humor nesta coisa. Logo eu, pessoa que se tem como muito séria, pessoa que, afinal, nem sequer sabe se é séria ou uma espécie de palhacita, pessoa que agora fica exausta à mais pequena reflexão e que conclui simultaneamente que isto é difícil mas que sabe que não se pode queixar da sua sorte neste mundo tão hostil – sim, vislumbrei as notícias do mundo há dias e claro que fiquei doente. Ai, vidinha medíocre de pessoa ultraformatada (ou será ultralimitada?) por aforismos populares. Escrevo “vidinha medíocre” e recordo esta passagem:

«Sorvendo a borra da sua própria chávena, Sabbath levantou finalmente o olhar do submerso erro crasso que era o seu passado. Por acaso o presente também estava em curso, construído dia e noite como os navio-transporte de tropas em Perth Amboy durante a guerra, o venerável presente que recua até à Antiguidade e prossegue a direito da Renascença até hoje – era a esse presente sempre-a-começar e interminável que Sabbath renunciava. Acha repugnante a sua inexauribilidade. Só por isso devia morrer. E depois, que importa que tenha levado uma vida estúpida? Qualquer pessoa com alguma inteligência sabe que está a levar uma vida estúpida mesmo enquanto está a levá-la. Qualquer pessoa com alguma inteligência compreende que está destinada a levar uma vida estúpida porque não há outra espécie de vida. Não existe nada de pessoal nisso. No entanto, lágrimas infantis marejam os seus olhos quando Mickey Sabbath – sim o Mickey Sabbath, daquele bando selecto de sete mil milhões de idiotas de primeira apanha que constituem a história humana – diz adeus à sua unicidade com um meio entaramelado e profundamente dolorido “Quem liga a mínima?”.»
in Teatro de Sabbath de Philip Roth 
Publicações dom Quixote, Colecção Ficção Universal, 2000

Sinto-me acompanhada de novo. O Sabbath, esse porcalhão, essa personagem mais que improvável no meu rol de amigos, minha alma gémea, faz-me sempre sentir acompanhada. Lembro o título de outro livro: ninguém morre sozinho e aceno a cabeça em assentimento.
Tenho a cachola feita em água e urge procurar fórmulas para o lugar de equilíbrio. Eu sei que vou conseguir. Vamos. This too, shall pass.

E a adopção? Onde fica a adopção no meio disto tudo? Precisamente aí: no meio. A adopção continua a ser o centro das nossas vidas. E também continua a ser algo informe. É um sonho, é o nosso sonho, tentamos dar-lhe forma, falando, lendo e escrevendo, mas só terá forma quando tiver rosto, ou rostos. Tentamos fugir dos sentimentos ambíguos que a adopção vai tomando ao longo desta espera que agora começa a parecer isso mesmo: uma espera. Uma espera cuja data final é absolutamente incerta. E a incerteza, amigos, é um sentimento bastante difícil de gerir nesta fase das nossas vidas. Isto não é uma gravidez. Não estamos grávidos.

Oiço muitas pessoas falar da gravidez na adopção, a gravidez do coração, mas não concordo com a aplicação do termo ao tempo em que esperamos pela proposta da equipa.
Não, nós não estamos grávidos. Nós estamos a tentar engravidar. Quando a equipa de adopções nos diz que temos tudo para ser pais, é como quando o médico diz a um casal que está tudo bem, ele e ela estão aptos a engravidar. Depois, é ir para casa e esperar que num dos meses seguintes apareçam os dois tracinhos vermelhos no teste. No nosso caso, voltámos para casa e esperamos que o telefone toque. É nesse dia que se confirmará a gravidez. Não no dia em que recebemos a certificação.
Uma mulher não está grávida a partir do momento em que decide engravidar (sei do que falo). Uma mulher está grávida a partir do momento em que confirma a gravidez biológica. Aquele filho, aquele alvo do seu amor é real. Existe.
Eu sei que os meus filhos existem, já nasceram, de outra mãe cuja vida infelizmente se enviesou. Estão algures neste país, ainda com os pais, ou há anos numa instituição. À espera. E nós também, à espera.
Mas os meus filhos ainda não estão no meu coração. Porque não lhes conheço o nome, são apenas uma ideia que amo. Não sei se é um ou uma, ou um e uma, ou dois, ou duas. Preciso saber quantos são os fetos. Preciso que alguém me diga que os seus nomes são reais para, então, colocar a mão sobre o ventre, olhar para dentro a sonhar com os seus nomes, repetidamente.
Não, nós não estamos grávidos. A gravidez na adopção é muito curta, a espera pela concepção é que é longa. Como na infertilidade. É a história a repetir-se.
Creio que é também por isso que os momentos iniciais são relatados como sendo de grandes choques, porque na adopção temos muito menos tempo para sonhar com o real, com quem já existe. Porque na adopção temos muito menos tempo para estar grávidos. Fazendo a matemática, do que tenho lido e ouvido, entre receber uma proposta e o nascimento da família, costuma acontecer tudo no espaço de um mês (máximo dos máximos), ou seja, um nono do tempo de uma gravidez biológica. Já a concepção, parece-me ser o dia em que o juiz declara a criança como disponível para adopção.

Eis-nos, assim, neste lugar de certeza de que a gravidez acontecerá, sem saber quando, neste lugar pouco fácil, pedregoso.

Há momentos em que nos saem desabafos como o do Chaparro, num destes Sábados, enquanto eu arrumava as compras feitas no mercado e ele preparava as brasas para grelhar o peixe: já não faz sentido a ausência dos nossos filhos nesta casa. É verdade, não faz sentido. Ainda assim, vamos esperando e tentando que seja serenamente. Olho o quarto deles com mais parcimónia e uso o quarto de brincar como sala de leitura e para compôr puzzles, num exercício de abstracção.
Sinto uma qualquer importância de não fazer a vida girar à volta desta espera, mas é assim que ela gira. Não estamos a encaixar no ditado Quem espera, desespera, mas não vos vou amaciar a verdade, é difícil. Temos convicções mais ou menos secretas de que já fizemos por merecer que a vida nos fosse um pouco mais meiga. Olhamos à volta, fazemos as contas ao sucedido nos últimos anos, entre divórcios e o nosso encontro, entre o reconstruir de uma vida e as diligências médicas e burocráticas para ser pais, sentimo-nos um pouco escrutinados pela vida. Pensamos que, caramba, não somos más pessoas, merecíamos uma chance de viver algo fora da incerteza. E depois, dá-nos um laivo de lucidez e lembramo-nos de que isto não trata de merecimentos nem de justiça, mas de acasos. Voltamos a assentar pés no chão e sentamo-nos à espera.

Nesta espera, sabe bem encontrar empatia como a que encontrei, escrita por uma senhora com quem, acaso dos acasos, me cruzei no meu percurso académico. Nesta espera de sentimentos ambíguos, por vezes, quando encontramos a empatia alheia, por pessoas do mundo da adopção, do outro lado, como a das palavras que se seguem, conseguimos dar nome às nossas emoções e saber reconhecer que são emoções válidas, que a espécie de dor que sentimos não é um erro nosso:

«A incerteza do tempo que levará até ser concretizada a adopção é outro factor causador de stresse. Ao contrário da gravidez, a duração do tempo do processo de adopção é altamente imprevisível. Este tempo de espera, mesmo após a sua candidatura ter sido aprovada, gera ansiedade, confusão, sentimentos de desamparo e muitas vezes depressão, podendo levá-los a questionar-se sobre o seu direito de serem pais.»
Fernanda Salvaterra in A Criança no Processo de Adopção – Realidades, Desafios e Mudanças
Coordenação de Manuel Matias e Mauro Paulino
Prime Books, 2014

Leio por dois motivos: porque gosto de aprender e porque me faz sentir acompanhada.

Ontem, ao sair do trabalho, sentia-me só e cansada. Após entrar no autocarro, tirei o livro para reler o pequeno excerto sublinhado, para me fazer lembrar que não estou só e que não estou em erro. Momentos depois, entrou no autocarro quase vazio um casal muito parecido com os meus pais. Eu ia sentada no lado certo para poder olhar o rio. A mulher desse casal dirigiu-se para se sentar no lado oposto, o homem chamou-a a sentar-se no meu lado, à minha frente, e disse-lhe “para irmos a olhar o rio”. E ela sentou-se junto dele. Ao passar pelo rio, olhámos os três e eu sussurrei que a Terra gira ao contrário e que os rios nascem no mar.

Deixo-vos com este óleo da praia fluvial do Agroal, onde nos fomos refrescar a meio das peripécias destas férias. Pesquisem e visitem, um conselho de quem se adora banhar nas águas frias do Nabão na piscina do Agroal. 
Foto do óleo foi surripiada ali


Cipreste

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Da vida para os livros e de volta para a vida

Consigo ouvir no silêncio de algumas pessoas uma certa dúvida sobre a pertinência do meu empenho em consumir a literatura possível sobre o tema da adopção. Por vezes, quando me perguntam pelo processo, respondo rapidamente que estamos em espera e sigo para partilhar as últimas leituras e consequentes descobertas. Não me vou perder a tentar explicar de onde vêm alguns dos silêncios. Acontece que basta um bom parágrafo para eu sentir que todas as leituras têm valido a pena. Não receio perder a genuinidade por me debruçar sobre teorias. Não receio tornar-me numa mãe que tenta aplicar modelos nos seus filhos. Porque eu sei que isso não me vai acontecer. Nisto, sou muito segura de mim: sei que sou autêntica, que ajo do coração. E confio muito nos meus instintos (não confundir com capacidades preditivas).


Somos feitos das várias experiências a que nos expomos, onde se inclui também a leitura e o estudo.  Os livros têm-me ajudado a:
1. Compreender comportamentos que eu sabia existirem, mas cuja compreensão das conjunturas eu não alcançava
2. Identificar situações exclusivas na adopção que eu desconhecia por completo
3. Conhecer as estratégias preconizadas e utilizadas por outras famílias
4. Finalmente, poder, um dia destes, saber identificar melhor determinados comportamentos que demasiado frequentemente são interpretados erradamente por negligenciar o contexto “adopção”.

Tudo isto, para poder vir a ajudar os meus filhos em eventuais dificuldades que não quero ver enrodilhadas em intervenções profissionais desajustadas. Ponto.
O amor, fiquem descansados os silêncios, será espontâneo e não letrado.
E sou eternamente grata a qualquer pessoa que esteja disponível para pensar e falar destes assuntos comigo.

Vejamos o seguinte que parece óbvio, mas na prática não acontece naturalmente a todas as pessoas:

«If the adoptees’ behaviours were seen as attempts to avoid pain, rather than deliberate provocation of the parents, the parents might be able to identify the signs or manifestations of that trauma and help their child integrate it. »

Esta é a última linha após duas páginas donde sublinhei o seguinte:

«Traumatic memories, in the form of emotional or bodily sensations, keep intruding into consciousness. This often causes the adoptee to appear irritable, aggressive, impulsive, and anti-social.
In the case of constriction or numbing, the adoptee is in another state of consciousness, where she can’t be hurt by painful memories. This state is characterized by emotional detachment, indifference, complacency, and passivity. (…)
Adoptees vacillate between intrusion an constriction.»

«This ambivalence is the source of great confusion and enigmatic behavior.
Not understanding the unconscious source of this behavior, parents think that their children should be able to change it at will. (…) in talking to adult adoptees who acted out as children or adolescents, they, of course, don’t understand it any more than their parents do. Michael told me, ‘I put my parents through hell, and I don’t know why. They were good parents (…)’. The idea that he was reacting to a trauma that he didn’t even remember had never occurred to him. He just thought he was a bad kid.»

Vamos a ver uma coisa, tudo se resume a esta frase:

«(…) mothers are not supposed to leave their babies. God should not let it happen. No rationalization changes that basic knowing

Se pensarmos nisto, se nos lembrarmos de que até nós, adultos, por vezes não compreendemos nem gerimos da melhor forma episódios de afastamento (pensem no caso de alguma amizade que tenha acabado, por exemplo), como é que uma criança conseguirá enfrentar dores tão intensas e geri-las racionalmente? Como é que uma criança, um ser emocionalmente em construção, poderá compreender o afastamento do ser que o criou, com quem, no mínimo, tem uma relação biológica?

As leituras são, na minha opinião, uma obrigação minha. Não as vejo como um instrumento para prever o que me vai acontecer. Eu não sei qual vai ser a nossa história e ela não está certamente escrita num livro. Apenas, acredito que entender os comportamentos de uma criança que passe por uma separação (no mínimo, pois nem sequer estou a considerar outras violências) acontecerá de forma mais fluída após conhecer algumas histórias e teorias. Voltamos à frase com que comecei as citações:

«If the adoptees’ behaviours were seen as attempts to avoid pain, rather than deliberate provocation of the parents, the parents might be able to identify the signs or manifestations of that trauma and help their child integrate it. »

Citações de The Primal Wound - Understanding the Adopted Child de Nancy Verrier (pp.58 e 59)

Partir desta premissa não quer dizer que venha a ser uma mãe permissiva e que interprete má-criação como trauma, pelo contrário, penso que ajudará a não confundir dor com má-criação – um dos mais infelizes mal entendidos que acontecem às crianças adoptadas.

Uma nota pessoal: das expressões que mais retenho das leituras é "ambivalência", tenho reflectido muito sobre isto, acho que é um caminho para compreender muitas coisas na/da pessoa adoptada

Cipreste

(e este é português!)

Acabei de saber deste livro através do fórum da APF. Liguei e, surpresa das surpresas, a minha livraria tem lá o livro,  o que é uma novidade: não ter de encomendar um livro sobre adopção e recebê-lo pelo correio*. Deixei-o reservado. E, ainda sem conhecer o contéudo, deixo já a sugestão numa de passa-a-outro-e-não-ao-mesmo e também pelo contentamento deste ser da realidade portuguesa, uma raridade na bibliografia que tenho encontrado.


* para mais, o preço na livraria está igual ao do site ;)

Cipreste

quarta-feira, 7 de maio de 2014

a caminho

Mais dois livrinhos:

coming home to self
the primal wound

conselho: comparem preços amazon/book depository/wook, comprei na book depository, nem sempre a wook é a mais barata e a amazon agora com os portes... 

~ ~ ~

E mais uma tradução autorizada que começo a fazer hoje e que virá aqui para o blog. Para quem está à vontade com a língua inglesa, podem ir lendo: Information for Adoptive Parents/ WHAT ADOPTIVE PARENTS CAN DO

Cipreste

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Sugestão do dia


Hoje comprei este livro para o filhote de uma amiga. Tenho um exemplar há cerca de 15 anos, oferecido pela minha melhor amiga. Passei a comprá-lo, de vez em quando, para adultos e crianças, indiscriminadamente. Já passavam alguns anos desde a última vez que o comprara para alguém. Emocionei-me quando o abri de novo. É bonito. Pronto. Era isso.
Deixei mais dois encomendados -  para uma adulta e para um crianço.
Achei que devia partilhar este segredo convosco. Estará certamente disponível na vossa livraria.
De nada. :)

Cipreste

domingo, 2 de março de 2014

Para sempre

«Everyday, more of who they are unfolds and unfurls, and it feels like a miracle that we get to be here and see it. (…)We are different people for being their parents. I think they are different people for being our children. We are shaping each other, day by day, into the family that all four of us are becoming, the family that I now can’t imagine being any other way. I know now that Laura really was right, all those years ago – you really do love your real babies, always, no matter what.»

p.205


Claudia Chapman in Hypothetical Future Baby - An Unsentimental Adoption Memoir


autora do blog my fascinating life

* * *

Periodicamente, tentaremos partilhar livros que vamos lendo. Acaba hoje esta semana de excertos diários do "nosso primeiro livro sobre adopção".


6ª-feira -Uma mãe normal, uma boa mãe
Sábado - Sobre vinculação e neuro-fisiologia (levantar a ponta do véu)

Cipreste

sábado, 1 de março de 2014

Sobre vinculação e neuro-fisiologia (levantar a ponta do véu)

«When we had just met, they didn’t expect anything of me. Now they expect everything. It’s utterly exhausting. It’s endlessly frustrating. It’s infinitely gratifying.
Yes, gratifying. I find myself thinking: I did that! I made you trust me, with my manipulative mothering ways! and then I want to do a little victory dance around the living room. And okay, sometimes I close the curtains and succumb. I’m not ashamed at all of feeling thrilled about this. It’s not about making us feel like a real family, and it’s not just about warm fuzzy feelings. Secure attachment is about brain chemistry, and parental responsibilities don’t get much bigger than keeping your child’s neurochemistry somewhere within the normal range. A securely attached child sees the world as an essentially safe place, and starting life without that makes everything – everything – harder.»

p.191/192


Claudia Chapman in Hypothetical Future Baby - An Unsentimental Adoption Memoir


autora do blog my fascinating life

* * *

Periodicamente, tentaremos partilhar livros que vamos lendo. Começamos com esta semana de excertos diários do "nosso primeiro livro sobre adopção".


6ª-feira -Uma mãe normal, uma boa mãe


Cipreste

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Uma mãe normal, uma boa mãe

«I knew I would be hard. I knew. I knew. I knew. But I didn’t know it would be like this. There are no words to describe how bad I’m coping. This is all so much more impossible than I expected. What is wrong with me, with us? (…)
“I wanted to be a different sort of person, “ I say. “It was so important to me to be a good mother. I’ve only had these babies for a week, and I feel like they have sucked my soul. I’m already a terrible mother. How can I have let the rot set in so quickly? Shouldn’t there have been a honeymoon period?”
Mum disagrees with me, gently, and tells me that I’m not a terrible mother. I appreciate the effort, but I know she’s lying; that’s what a good mother would do in this situation.
“I am,” I say. “I know it. I’ve got these two tiny babies, and they are so vulnerable, but they are so needy and I just can’t handle it. I resent them already. I know they need all of me but I don’t want to give it to them. They cry, and when I hear it my heart sinks. I don’t want to feed them again.”
“No,” she says “that doesn’t make you a bad mother. That makes you a normal mother. What makes you a good mother is that you don’t want to do it but you do it anyway.”»

p.141/142


Claudia Chapman in Hypothetical Future Baby - An Unsentimental Adoption Memoir


autora do blog my fascinating life

* * *

Periodicamente, tentaremos partilhar livros que vamos lendo. Começamos com esta semana de excertos diários do "nosso primeiro livro sobre adopção".

2ª-feira - A ideia de um filho
3ª-feira - Fazer *algo*
4ª-feira - Cansaço, a miscelânea de emoções
5ª-feira -Toda as adopções começam com uma história de perda

Cipreste

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Todas as adopções começam com uma história de perda

«We ask for information about the children’s past, how they have found themselves here, why it is that they are likely to grow up in England with two white strangers. Desta tells us their history and I connect this heart-breaking story with the two tiny infants sleeping downstairs, I don’t know how to bear it. All adoption starts with loss is something I have known ever since we started on this path, but the abstract idea of loss feels a lot less horrifying than the real personal story that will put these children in my arms.»

p.114


Claudia Chapman in Hypothetical Future Baby - An Unsentimental Adoption Memoir


autora do blog my fascinating life

* * *

Periodicamente, tentaremos partilhar livros que vamos lendo. Começamos com esta semana de excertos diários do "nosso primeiro livro sobre adopção".

2ª-feira - A ideia de um filho
3ª-feira - Fazer *algo*
4ª-feira - Cansaço, a miscelânea de emoções


Cipreste

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Cansaço, a miscelânea de emoções


«I’m sick of crying, and I’m sick of trying to hold in the tears. I’m sick of whining about it. I’m sick of doubting myself, and wondering if I can ever be a good parent to an adopted child when the adoption process makes me so unbearably angry. You make me question myself and my choices and lose all my self-control.»
p.77


Claudia Chapman in Hypothetical Future Baby - An Unsentimental Adoption Memoir


autora do blog my fascinating life

* * *

Periodicamente, tentaremos partilhar livros que vamos lendo. Começamos com esta semana de excertos diários do "nosso primeiro livro sobre adopção".

2ª-feira - A ideia de um filho
3ª-feira - Fazer *algo*


Cipreste

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

fazer *algo*


«I’m realizing more and more that adopting really, really isn’t a replacement for doing things the normal way. It’s great, but it’s not a replacement. I feel intense joy about the family that we are going to have, but I still find myself mourning the losses of what we won’t have, too, that we won’t be, what I can’t do. I expect our child will feel the same. However joyful our lives are together, he should never have had to feel the loss of one set of parents before gaining a second. (…)
Also, I want to be doing something for this child, and I cannot. I think about people telling me that this wait is like a pregnancy wait and I know in every bone of my body that they are wrong. I know that being pregnant is difficult. But those difficulties are not these difficulties.»

p.49


Claudia Chapman in Hypothetical Future Baby - An Unsentimental Adoption Memoir


autora do blog my fascinating life

* * *

Periodicamente, tentaremos partilhar livros que vamos lendo. Começamos com esta semana de excertos diários do "nosso primeiro livro sobre adopção".

2ª-feira - A ideia de um filho

Cipreste

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

a ideia de um filho


«“I don’t know that I can do this, Laura”, I say “Most babies I would conceive wouldn’t even survive. How could I get pregnant, knowing that my baby would probably never make it out alive?” I'm getting shrill. “And if it does survive, and it has serious special needs, how can I know for sure I would love it?” Shriller. “And what about Jay? Would this destroy our marriage? And how can I even be having these thoughts?” At this point, only dogs can hear me.
She says to me: “The problem is that you’re not thinking about an actual child, you’re just thinking about the idea of a child.”
“My hypothetical future baby,” I agree.»
p.17


Claudia Chapman in Hypothetical Future Baby - An Unsentimental Adoption Memoir


autora do blog my fascinating life

* * *

Periodicamente, tentaremos partilhar livros que vamos lendo. Começamos com uma semana de excertos diários do "nosso primeiro livro sobre adopção".

Cipreste

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

(compras racionais) e (será que estou a projectar blábláblá?)

Ontem encomendámos 2 livros pela net. Não temos muito hábito de fazer compras online, gostamos de ir à fonte, dar os bons dias a quem está atrás do balcão, palpar e cheirar as coisas antes de as comprar, beber um café pelo caminho, fazer o caminho de mãos dadas, enfim, gostamos de coisas de carne e osso. Não quer dizer que por vezes não recorramos ao clique. O que dita essas compras é geralmente o facto de não ter o produto acessível na nossa cidade ou por ter um preço que lamentavelmente nos faz abdicar dos bons dias a quem está atrás do balcão, etc. etc.
Temos lido bastante sobre adopção, sempre a partir de material disponível na net (blogs, artigos, teses), só tínhamos comprado um livro até agora. E foi uma bela compra, ambos o lemos (nota mental: a ver se deixo aqui uns excertos, um dia destes). Agora aguardamos A Aventura da Adopção de John R. Thompson e Karen J. Foli e Este Meu Filho que Eu Não Tive, A adopção e os seus problemas de João Seabra Diniz. Não são os que estavam no topo da lista mas algumas circunstâncias levaram a que cheguem primeiro. Vamos ver o que nos dizem.

Entretanto, e ainda sobre compras e mais especificamente sobre compras na net, tenho de confessar que ultimamente ando com mais dificuldade em controlar os meus cliques, mais do que alguma vez tive com o controlo do hábito do tabaco, por exemplo (e para verem o quão intenso isto é). Fica-me estranhamente difícil não comprar certas e determinadas coisas. Digo estranhamente porque nem por isso me considero uma pessoa que compra por impulso (na verdade, nem sequer sei se sou forreta, mas acho que não sou). 

Acontece que ao pesquisar a imagem de um brinquedo para o último post sobre o enxoval dei de caras com todo um mundo revivalista que me dá uns calores de felicidade no peito deixando-me sozinha e impotente com os tais impulsos para clicar no botão “comprar”.

Deixo-vos dois exemplos de coisas que os meus filhos têm-de-ter porque, convenhamos, os meus filhos têm-de-ter isto:




e esta lancheira, é absolutamente imprescindível ter uma lancheira do Curious George!

eu gostava tanto (mas tanto!) das histórias deste maluco que até deu azo a crítica da minha educadora de infância que me acusou de não ser original e escolher sempre o mesmo livro (bof!)

Percebem agora o drama de uma pobre futura mãe assalariada que tem acesso à net no trabalho e que ao invés de ir ao bar tomar um café fica a seguir link-após-link e a suspirar e a lembrar-se de quão feliz foi na sua infância?
Afinal, criar não é (também) proporcionar momentos felizes aos nossos filhos? Se estes objectos/personagens nos trouxeram tanta felicidade nas nossas infâncias, não fazemos mais do que a nossa obrigação ao transmiti-los aos nossos filhos.
Parece-me que sim, mas isso também pode ser só o impulso para clicar no botão “comprar” a falar.

Cipreste


p.s. só mais uma coisinha: será que conseguem imaginar o quanto me tive de conter para não deixar um post quilométrico e resumir-me a apenas dois (2!) objectos de desejo? Por exemplo, não postei esta sacola que qualquer mãe deve ter para transportar lanchinhos para os filhos.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Ir aos livros ou não ir aos livros? Eis a questão.

Quando sonhava ser mãe biológica tinha como plano não ler livros de puericultura, pedagogia e o diabo a sete. Embora reconheça que sou profissionalmente formatada para a pedagogia, sempre achei que a educação deve ser uma coisa natural, algo que acontece e não precisa de teorias. Esta convicção nunca se baseou numa negação dos saberes da pedagogia, mas antes baseava-se numa postura que assume que, com ou sem livros, serão sempre cometidos erros. Sabemos que todos temos convicções e certezas que caem que nem castelos de cartas quando chegamos à parentalidade. É óbvio que eu, ainda sem ter chegado lá, achava que as minhas são inabaláveis e que não vou engolir as minhas palavras. Somos assim e algo me diz que é saudável – tanto o facto de termos convicções (para disfarçar dúvidas e incertezas) quanto a realidade de ter de as deitar pelo chão na hora certa (para reforçar convicções e certezas).

Portanto, eu dizia que quando sonhava ser mãe biológica tinha como plano não ler livros que me guiassem nesse caminho. Fiz o mesmo durante os tratamentos de fertilidade, quis saber apenas o essencial. Ainda não sei se esta postura é a mais saudável, mas suspeito que pelo menos é saudável porque se situa algures no meio-termo entre “esgotar a informação” e o “não querer saber”.

Agora com a adopção a coisa pia mais fininho. Ui. É um ver-se-te-avias de leituras. Leio de tudo, do bom e do mau. E vídeos! Há dias fui apanhar-me frente ao youtube a ver vídeos atrás de vídeos, sem qualquer tipo de lógica no clique seguinte. Já percebi que há conceitos que me são simpáticos como o therapeutic parenting e que há outros que considero puras aberrações como o attatchment therapy (brrr).
É um bocadinho cansativo querer “saber tudo”, mas não encontro outra forma de estar na adopção. Até começar a ler, não me era espontâneo nem automático compreender certos meandros do medo e da insegurança de uma criança adoptada, nem afianço que teria reacções pedagógicas como as recomendadas nestas situações. Pelo que só posso considerar que ler sobre o tema tem sido muito positivo para mim e, assim o espero, para o(s) meu(s) futuro(s) filho(s).

Uma das coisas que mais me faz sentir solidária com os pais adoptivos que tenho lido é mesmo isto: as escolhas conscientes nas reacções pedagógicas e o peso social que podem assumir. E é com isto que (mais) sinto que (mais) aprendo. Ou seja, há decisões que os pais adoptivos têm de tomar perante certas situações de conflito que por vezes são o oposto do preconizado (e aceite) socialmente, logo, muitas vezes criticado por família e amigos. Muitas vezes injustamente apelidado de paternalista e condescendente e os pais diminuídos a pais que permitem tudo só porque o filho é adoptado. E isto, curiosamente quando se trata do contrário: a reacção dos pais é muito reflectida e baseada no bem-estar do seu filho. 

Um exemplo: Suponhamos uma birra num lugar público.  Habitualmente, os pais biológicos sabem que os seus filhos sabem que o seu amor é incondicional e que os pais estarão ali para os proteger contra tudo e contra todos. Aquela coisa de que as crianças só têm coragem de dizer “não gosto de ti” às pessoas com quem estão emocionalmente seguras.
Portanto, durante a tal birra no lugar público, é mais ou menos consensual nos meios em que me movo o método “isso já te passa/ quem é este menino tão mal educado/ ficas aí? eu vou embora”.

O mesmo não acontece com as crianças adoptadas, e não estamos a falar apenas dos primeiros tempos “até à adaptação” (eu sei, são muitas aspas e parêntesis, tenham paciência). Do que tenho lido, quando sensíveis para certos processos das crianças, os pais adoptivos não reagem da forma descrita acima a uma birra dos filhos num lugar publico. Porquê? Porque geralmente os motivos por detrás da birra, embora em ambos seja basicamente a frustração, esta não tem origem nas mesmas causas e a forma como os pais reagem pode ajudar a superar esse momento ou a exacerbá-lo e até a introduzir novo um mau-estar na criança.

Continuando com o exemplo, quando uma criança adoptada faz uma birra a sua frustração pode estar minada com algo mais para além do que é natural nas limitações de se ser criança e não se poder fazer tudo o que se quereria fazer. Fazer uma birra pode não ter iniciado com esse objectivo mas pode muito bem ser uma forma de testar ali, no lugar público, o quão empenhados estão aqueles pais em serem seus pais. É agora, vou fazer uma birra tão má, mas tão má, que vais ver como sou horrível e vais ver se não me deixas aqui, vou provar como toda a gente, mais cedo ou mais tarde, me abandonará. E podemos acrescentar mais umas conclusões a esta teoria como porque sou mau e ninguém gosta de mim, não mereço um pai e uma mãe, etc etc. Sim, assim tão básico e a direito. Penso que é claro que reagir como descrevi acima com o método “isso já te passa/ quem é este menino tão mal educado/ ficas aí? eu vou embora” é completamente contraproducente do ponto de vista pedagógico numa situação destas. Porque se trata de uma emergência emocional. Porque, mais urgente do que ensinar boas maneiras, é urgente abraçar a criança e mostrar-lhe (se necessário dizer mesmo) que ninguém a vai deixar ali sozinha a chorar a sua frustração, as suas angústias, o seu medo de ser abandonado e de não merecer ser amado incondicionalmente, para além das boas e das más maneiras. Que, no fim do dia, volta para casa com o pai e a mãe.

~ ~ ~

E logo a mim havia de calhar ser mãe adoptiva. Eu, tão firme e hirta. Tão convicta da educação “rígida mas com amor” que fui dando aos sobrinhos. Só penso nos meus mais velhos que passaram tanto tempo comigo. Não digo que estivesse completamente errada, e é verdade que eles mostram muito amor por mim pelo que as memórias não devem ser más. Mas penso nisto que tentei explicar das reacções pedagógicas e chego à conclusão de que provavelmente ler não nos faz assim tão mal nem nos mina a naturalidade. Porque o que nos é natural é o amor e este não se aprende nos livros. E penso que o que se aprende nos livros é a travar e a modelar  as nossas reacções. Afinal, falamos de construções e essas estão lá, nos livros. E isso não me parece nada mal. Parar e respirar e, se necessário, contar até 10.

E depois, estas coisas não podem ser só aprendidas porque se leu num livro, têm de ser sentidas. Vou dar-vos um exemplo que vos pode parecer completamente parvo, mas não é. Eu sei que é bom porque não o li apenas, senti-o e foi por isso que o consegui concretizar.
O meu gato vai para 10 anos com 8kg de mimo. É um gatarrão filho único. Um doce que faz birras. De vez em quando passa-lhe pela cabeça que manda cá em casa e, de orelhas para trás, faz uns avanços de quem nos vai pôr na linha. Mas tem azar e costuma, er... costumava levar uma palmada que resolvia o assunto de uma (mão-)assentada só. Há tempos, estava eu a reflectir sobre esta coisa da história de alguns meninos adoptados e no quão assustador deve ser entrar na casa de estranhos para se tornar seu filho e eis que um pensamento leva a outro e me  veio à cabeça as palmadas que o Manjerico leva de vez em quando. Senti um calafrio ao imaginar um primeiro dia com uma provável birra do Manjerico a ser resolvida com uma palmada e a imagem com que a criança ficaria de nós: potenciais educadores pela palmada. Nem consigo descrever o quanto essa imagem me doeu. Falei com o Chaparro e resolvemos tentar mudar a nossa reacção pedagógica perante as birras do Manjerico. Adoptámos o método de lhe soprar no focinho quando o “não” não funciona, aprendemos esta com a Gi.
Começámo-nos a treinar para a não-palmada em Setembro e passados 2 meses e picos posso afiançar-vos que o sortudo do Manjerico deixou de levar palmadas e até faz menos birras (go figure!). Não digo que vá tentar aplicar teorias a torto e a direito, mas percebemos que esta era importante e sentimo-nos felizes e orgulhosos de ter concretizado isto.

O que eu quis dizer com este palavreado todo resume-se nisto que li há tempos: uma mãe a dizer que se tivesse tido os seus filhos adoptados antes dos seus filhos biológicos certamente que estes últimos teriam sido poupados a muitas palmadas. Capisce?

Resposta: Ir aos livros, aos amigos, aos blogs. Parar e respirar e, se necessário, contar até 10. No fim, confirmar com o nosso coração.










Cipreste