Ontem, foi o último dia de trabalho do Chaparro. Alegando a extinção de postos de trabalho, o patrão milionário viu-se obrigado a arrumar contas com os primeiro 25 que despachou colectivamente, alguns com 30 anos de casa. E assim se viram livres dos 2 meses legais da tortura da praxe que distam entre a oficialização do despedimento e a sua concretização.
Ontem, entre intervalos do meu trabalho, acompanhei o meu pai nas consultas – Oncologia Médica e Consulta da Dor. O dia começou ameno, mas quando chegou à Consulta da Dor começou a queixar-se de forma mais intensa. Contratempos e urgências a que os médicos foram chamados, levaram-nos a perceber que as dores do meu pai não eram ali uma urgência major. E nós compreendemos. Nós compreendemos sempre. São 13 anos a arrastar-nos entre muitas especialidades.
Agora, a especialidade da dor.
O meu pai saiu de lá aliviado da dor. Eu, nem por isso.
Trouxera o carro para a cidade, a 100km de casa deles, ainda insisti que os levava, que conduziria o seu carro. Mas ele é um resistente. Disse-me: eu consigo. E eu acreditei nele. Lá foram. A minha mãe ligou quando estavam a chegar. “Quando chegarem, liga-me”. Que é para eu ficar mais descansada. Mas eu não fiquei mais descansada. A minha mãe disse “Já chegámos, o pai está melhor.” e ele, lá do volante, disse bem alto, para eu ouvir, “beijinhoooos!”. E eu disse “beijinhoooos!”. E o meu coração fez aquela coisa de ficar muito pequenino e muito grande ao mesmo tempo.
Tive de anular umas das reuniões que ia ter mas ainda consegui ir à outra. O Chaparro foi buscar-me no fim, com o porta-bagagens cheio de caixas com livros e catálogos e mais não sei o quê – o espólio que lhe restou.
Dias grandes.
Hoje, vim ainda mais cedo que o habitual, sozinha, de carro, e ele lá ficou. Vai ao banco e vai continuar a obcecar com as várias hipóteses profissionais, que maioritariamente passam por criar o seu próprio emprego. Não vale a pena ter a veleidade de que conseguirá, na conjuntura actual, emprego na sua área.
Costumávamos sair de casa juntos pela manhã. Só temos um automóvel. Ele deixava-me de manhã e seguia, ao final da tarde eu regressava a casa de autocarro ou a pé. Não sei como vai ser agora.
Estacionei na garagem do meu trabalho, no -1, o elevador desceu ao -2 para apanhar mais alguém. Entraram 3 colegas com quem simpatizo. Um perguntou-me pelo meu pai e dei por mim a responder “um dia de cada vez” já entre lágrimas. Coitados, embaracei-os. Pediu-me desculpa por perguntar. Eu agradeci o seu cuidado ao perguntar. E desculpei-me pela vontade própria das minhas lágrimas.
Cheguei ao meu gabinete para de seguida sair com um cigarro e uma moeda para tirar café da máquina.
Éramos 3 fumadores. Uma desabafou que é 6ªfeira, o outro disse em desalento que é igual a ser fim-de-semana. Ele não trabalha por turnos nem noites, os dias são iguais porque sim e rematou que somos sortudos por ter emprego. Eu não disse nada. Eu pensei “hoje é o primeiro dia do Chaparro desempregado”.
Pensei que sei que sou sortuda por ter emprego e pensei que sou ainda mais sortuda por ter um emprego em que não estou simplesmente a enriquecer um porco rico que tem coragem para despedir pessoas com cancro ou acabadas de comprar casa ou de ter um filho – esse é o ex-patrão do Chaparro. É essa a forma como cumpre a responsabilidade social de que tanto os da sua laia apregoam fazer.
Eu estou no serviço público e sei que é isso que faço. Nenhum ordenado paga a humanidade que venho buscar aqui. Estou feliz por ver o Chaparro livre daquele ambiente.
A vida pode ser sempre a perder, mas há formas mais dignas de perder do que outras. Não odeio o que é fácil, nem acho que tudo o que vale a pena é difícil de conseguir. Mas tem sido a nossa experiência de vida. Estou mesmo muito feliz por ver o Chaparro livre daquele ambiente. Consola-me saber que pode estar aí ao virar da esquina o realizar de um sonho para ele.
Ok, ainda não será o sonho de ter uma cabana na praia, mas já não será nada mau. Está nas nossas mãos.
Deixo-vos com este poema:
BIOGRAFIA
Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
Sophia de Melo Breyner Andresen
Um bom dia para vós,
Cipreste