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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

às vezes, não, não está tudo bem

Tenho lido tanto sobre como lidar com as contrariedades na parentalidade que já tudo me parece a mesma coisa. Neste momento, sinto que a informação está emaranhada num rolhão ali entre o meu cérebro, o meu coração e o meu botãozinho da reacção.

Educar é difícil, muito difícil.
E eu vivo com esta nuance da educação na adopção.

Muitos me dizem que ah, e tal, educar é difícil, ponto. Independentemente de o fazer num contexto de adopção. Sim, mas não.
Quando fizemos uma das formações com a equipa de adopção, tivemos um exercício sobre crenças e mitos. Lembro-me de me quedar muito tempo sobre esta questão: há diferenças entre as famílias adoptivas e as famílias biológicas. Parece fácil de entender, isto, não é? Porém a questão toca ali nas nossas convicções de tipo “ora essa, somos como qualquer outra família”. Da mesma forma como poderá reagir uma mãe a quem eu diga que acho que tem o trabalho mais facilitado por o seu filho ter vivido sempre consigo – não obstante a eventualidade de ter dificuldades próprias. Pois, são diferentes. As famílias, os filhos. A semelhança está no amor.

Quando me frustro e me zango com os meus filhos, quando arrefeço e me arrependo de morte, há uma pedrinha especialmente aguçada que me magoa a alma, a pedrinha da adopção. A pedrinha que me lembra que, não obstante estarmos todos a fazer o nosso melhor, o melhor deles é muito mais esforçado e dorido e doloroso e corajoso do que o nosso. E lembro que não detenho a informação “toda”. Que a codificação, processamento e tradução que fazem das minhas abordagens não está munida da total confiança de que sou deles, toda deles. 
Eles sofreram quebras, rupturas, interrupções no processamento, no seu desenvolvimento de competências que incluem, por exemplo, a confiança no adulto, na sua permanência.
Caramba, eu decorei isto a primeira vez que o li: a vinculação só é considerada completa aos dois anos após a adopção. Mais coisa, menos coisa, ok. Antes decorei a teoria, agora já percebi isto na prática, na pele, já o senti, já sei que é verdade, que não é um mito.

E falho na mesma,
E continuamos, ainda assim, com toda a bagagem que nos permite, pasme-se, reagir como se fôssemos pais biológicos. Os nossos botõezinhos não sabem que estes filhos não estiveram sempre connosco. Aos nossos botõezinhos só deve chegar a informação do amor, digo eu.

Zangarmo-nos com um filho, esquecermo-nos pela milésima vez da promessa de que não voltamos a gritar é normal, é humano. No entanto, quando há uma lacuna na história da família, essa humanidade assume em nós pais uma transformação que faz pesar terrivelmente a dor da nossa falha - como uma quebra na promessa que fizemos aos nossos filhos. A promessa do amor. Nós sabemos que, não obstante o ralhete, os continuamos a amar, mas nunca temos a certeza de como fica a certeza deles.
Depois, a vozinha cá dentro grita-nos e arranjamos maneira de inserir no meio do ralhete “a mãe ama-te muito, não se trata disso, trata-se de não estar nada satisfeita com o teu comportamento”. Ah, e nem sempre a vozinha chega a tempo, e nessas vezes ficamos ainda pior. Na fossa, como se dizia quando eu era adolescente, ficamos na fossa.

Bolas, amamo-los, são os nossos filhos, queremos o melhor do mundo para eles e fazemos isto. Bolas.

E, reparem, a informação que me chega diz que não devia reagir assim, não é? Porque já sei... os actos dos nossos filhos não o são “contra nós”, nem os nossos filhos nos amam menos por não seguir as nossas ordens orientações. Também sei que ficam aflitos e que ficam angustiados (oh, céus, angustio só de escrever isto).
Tantos livros e blogs e esses modernos trainers de famílias e cursinhos e quejandos já mo repetiram. Todos. E nenhum deles o fez com um traço sequer de originalidade que o distinguisse dos outros porque estão estamos todos a falar do mesmo: da humanidade de cada lado da parentalidade, de pais e de filhos. Das expectativas dos pais, do esforço e dedicação dos pais que, muitas vezes, parece cair em saco roto, do cansaço da associação a todas as outras tarefas da vida, da necessidade de colo dos filhos e da imaturidade neuropsicológica própria da idade dos filhos e, e, e que, afinal, só queremos, todos e cada um de nós, apenas... ser amados (no meio destas vírgulas todas que não consigo anular).


Hoje (ontem, escrevo já depois da meia-noite), zanguei-me com ambos meus filhos. Não quis gritar e consegui, hoje consegui, mas nem por isso fui mais simpática. Eles ficaram tristes, eu fiquei triste. Senti um desalento enorme, senti um cansaço enorme.

Às vezes, é muito difícil conciliar o colo todo que se tenta recuperar, com o colo do dia, com as coisas “normais” das crianças, com as coisas “extra” dos nossos filhos em particular, com a sopa, com os deveres, com as nossas coisas.
Às vezes, ficamos muito longe da teoria lógica que todos os experts que referi acima compilaram sobre o que é isso de vivermos em amor e comunhão.


Nesses dias, só me sobra assumir que fiz o meu melhor*, que amanhã quero procurar ser melhor do que fui hoje. E ir espreitar os meus filhos a dormir antes de me deitar.

* o problema é esta sensação de que o nosso melhor não chega, de que o nosso melhor pode fazer mal aos nossos filhos. Oh, angústia...




Nesses dias, tenho tolerância zero a pessoas que falam à professor Eduardo Sá, porque me fica sempre a parecer que, pese embora admitam que somos todos humanos e falíveis, o tom de voz parece dizer-me “ok, eu estou a desculpar-vos por serem assim defeituosos, e só assumo que sou humano por misericórdia com todos vós - mortais”.

Nesses dias, apetece-me dirigir a minha exasperação a algo, sei lá, a alguém. Alguém que não seja os meus filhos. Por isso, mantenho esta irritaçãozinha de estimação com a voz de expert maior do professor e evoco-a. Porque representa para mim todos aqueles que falam como se tivessem a situação milagrosa para isto e eu começo a suspeitar que ela, afinal, não existe. Que temos apenas de aprender a viver com isto e com a possibilidade do dia seguinte.

Vou calar-me, vou espreitar os meus filhos a dormir. 
Estou ansiosa por abraçá-los de novo pela manhã.

Carpe Diem,
Cipreste


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

mágoas


Já ultrapassei muitas das mágoas dos últimos anos. 

Há uma que é um pau-de-dois-bicos: a minha esterilidade.

Assim mesmo, com o nome à antiga. Fui estéril. Sou um campo estéril. 
O meu ventre foi estéril, não me serviu de nada, só me serviu para sofrer física e psicologicamente.

Nem sequer o parirás com dor me calhou.

O tempo passou. Tornei-me mãe. O meu coração tem filhos. E deixei de ter as dores físicas.

Sinto agora serenidade na forma como convivo com a infertilidade e o fim dessa história com a histerectomia, mas não sinto serenidade quanto ao facto de não ter sido eu a gerar, carregar, parir e amamentar os meus filhos. 
Estes filhos. 
Os meus filhos.
Magoa-me não ter sido eu. 
Se são meus - que são, não me faz sentido não ter sido eu a gerar, carregar, parir e amamentá-los. 
É como um buraco na realidade.


Ainda não consegui solucionar isto nem sei se é um desgosto que alguma vez venha a estar arrumado e num lugar de convivência sã com os factos.

Não são só os meus filhos que têm mágoa de não ter fotografias suas de quando eram bebés, eu também tenho - especialmente de fotos destas: mãe e filho, após o nascimento.

Tenho mágoa de não poder dizer: fui eu que fiz os meus filhos.
Estão a ver estes dois seres tão maravilhosos, alegres, compassivos, divertidos, disponíveis, bondosos, generosos? Queria gritar: FUI EU QUE OS FIZ.

Não o posso dizer, não fui eu, de facto, que os fiz.

Será egoísta? Não sei.
Sou consciente de que não tem nada a ver com querer anular a existência dos seus progenitores nas suas narrativas. Não tem a ver com as pessoas do passado, tem a ver comigo e com uma lacuna que existe na biologia dos meus sentimentos. 

Às vezes, penso que, no caso de algum dos meus filhos vir a ter os seus próprios filhos, essa imagem - deles com os seus filhos recém-nascidos (embora ambos digam que quererão adoptar, mas isso são outros quinhentos) - com os meus netos, possa vir a redimir a ausência da nossa. 
Não sei explicar onde fui buscar esta ideia, é até uma ideia que mais me parece ser uma fantasia. 
E agora estou a partilhar as minhas fantasias com pessoas que nunca vi? Oh céus, acho que ao contrário do que sempre pensei, afinal a escrita tornar-nos-á inconscientes? :)

Eu avisei, isto é um pau-de-dois-bicos, não há saída racional possível para este assunto, nem forma coesa de eu o conseguir explanar. 
Pelo menos por agora, porque é uma mágoa e as mágoas são tão só isso: dor de alma, desgosto. 
E a dor de alma não me deixa falar com nexo.

Talvez passe :)

Bom dia a todos,
Cipreste

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

dores muito específicas e muito sérias

Ler blogs ou livros de pessoas que foram adoptadas, os seus testemunhos de como viveram (e têm vivido) a condição de pessoa adoptada, tem sido o melhor e mais duro exercício para mim, enquanto a mãe adoptiva.

O meu maior desejo, a minha luta é manter-me sempre com a mente aberta e procurar uma certa clarividência nesta missão de ter as decisões de vida dos meus filhos nas mãos.

O meu maior receio é um dia perceber que de alguma forma os impedi de viver, de sentir a sua existência de forma plena.

Quando os nossos filhos precisam de colar peças do seu passado, não nos estão a rejeitar, estão a tentar sarar e o nosso papel é lamber-lhes as feridas.

Para além da validação das suas narrativas, um caminho que vamos seguindo é este, que verbalizamos junto deles sempre que surge (ou se repete) alguma dúvida:

- Ninguém manda no teu coração. O que tu sentes, só a ti diz respeito e ninguém, ninguém tem o direito de qualificar os teus sentimentos.

E rematamos sempre com:

- Se nos nossos corações cabem três filhos - tu e os teus irmãos, porque é que não pode haver lugar no teu para mais do que um pai ou mais do que uma mãe, por exemplo? Afinal, tu também amas mais do que um irmão, não é?




É preciso sentir as dores, é preciso deixar de enfiar as coisas num buraco escuro. É preciso caminhar lado-a-lado com eles. Se necessário, partir mesmo com eles à procura de respostas.
Já li testemunhos de adultos que foram adoptados em bebés e que descreviam sensações como de "membro fantasma" que relacionavam com a ausência de um (ou ambos) progenitores na sua história. Já li demasiados testemunhos sobre a sensação de se viver em dormência, aparentando ser a pessoa mais de bem com a vida, para fechar deliberadamente os olhos a isto. O suicídio e a automutilação têm números específicos de incidência em adolescentes adoptados (sendo bem certo que não estou a falar de números de Portugal, que nem sei se existem).

Não escrevo isto porque esteja alarmada (senão não o escrevia) nem para assustar ninguém, é apenas um resumo-muito-resumido do que sinto quando leio adultos ou adolescentes relatar a dor de lhes ter sido privado viver a sua narrativa completa em detrimento de terem de viver o sonho dos seus pais adoptivos.

É preciso abrir os braços a tudo o que os nossos filhos são, a toda a história que trazem consigo.
Quando nos propomos adoptar, temos de ter o coração aberto para a entrada nas nossas vidas não só dos nossos filhos, mas de todos a quem amam e cujo bem estar é necessário ao seu.

Não, a parentalidade na adopção, não é igual à parentalidade na biologia.

Cipreste

p.s. deixo este link - Lost Daughters, apenas como um ponto de partida para quem esteja interessado na temática; conheço outros lugares, com outras perspectivas, mas as dores são "as mesmas"

quarta-feira, 30 de abril de 2014

da boca dos outros

Hoje trago-vos um post traduzido por mim do inglês para o português, pois achei que o assunto merece não ficar perdido sem tradução, trata de identidade e da obrigação dos pais adoptivos em não fechar os olhos à biografia dos filhos prévia à adopção.
Foi através desta moça, muito honesta nas suas reflexões e consequentemente na sua escrita, que encontrei o livro Adoption Reunion in the social media age.
Mesmo sem saber ainda quem vai ser meu filho/a(s), enquanto candidata à adopção nacional, há uma série de questões relativas à cultura às quais eu e a minha família seremos poupados. Ainda assim, restará muito sobre a identidade que percebo agora poder vir a ser um problema se não for bem encarado por parte dos pais adoptivos, por nós. O livro que refiro deu-me uns belos abanões sobre coisas de que nunca me lembraria se não as lesse ou, então, só no momento em que as fosse vivenciar. Neste momento, eu e o Chaparro temos muito presente questões sobre o direito da pessoa adoptada à sua história, ao seu passado, aos seus dados genéticos e origens.
Deixo uma passagem da página 29 do livro, traduzida por mim, sobre o processo de se reconhecer a necessidade à própria biografia e os resultados de procurar negligenciar essa necessidade:

«Olhando agora para trás, para os meus primeiros anos, consigo perceber de que forma a separação da minha família original me afectou ao longo da vida; Eu simplesmente não reconheci os sinais na altura. Ter-me-ia descrito como uma pessoa feliz, mas agora percebo que em grande parte do tempo eu estava mais próxima da dormência.»

Não sabemos como se desenrolará a nossa história, mas sentimos a premência de nos mantermos atentos a estas questões. Felizmente, há os blogs e os livros.

Segue-se o texto, via Casa Bicicleta.
Enjoy,
Cipreste





Enquanto mãe de uma criança adoptada, passo o tempo a pensar em questões de identidade. O que nos faz quem somos? O que é importante para a nossa noção de nós mesmos e o nosso lugar na família? Como posso ajudar a minha filha na sua busca pelo seu eu? Devo envolver-me nesta busca? Estas são coisas sobre as quais penso.

Provavelmente seja o contraste entre ter filhos biológicos e uma adoptada que me traz esta questão de forma mais presente. Os meus rapazes, como a maioria de nós, têm a sua identidade como algo garantido, os seus antepassados, as suas origens, as parecenças… todas as pequenas peças individuais que fazem de nós, nós. Ter acesso às histórias e fotografias e anedotas a qualquer momento é, enfim, uma dádiva. É uma coisa que a maioria de nós tem e em que a maioria de nós nunca tem de pensar. Está simplesmente ali. De cada vez que desejamos pensar acerca de quem somos e de onde vimos… não temos de pensar demasiado. A história está ali ao nosso alcance.

Quarta-feira foi o aniversário do QF#1*. Casualmente, mencionei ao jantar que lhe queria ter ligado às 10h03 da manhã porque essa é a hora exacta do seu nascimento. E ainda acrescentei num Sábado, estava a chover. O QM* perguntou a que horas nascera o QF#2 e eu respondi.

À medida que a conversa decorria, a Menina da Bicicleta (MB)** perguntou a que horas é que eu nasci? Ela já me tinha perguntado isto antes e já tivemos outras conversas sobre o facto de não sabermos pormenores sobre o seu nascimento. Na verdade, não sabemos nada. Não creio que esta conversa tenha sido particularmente dolorosa para a MB, não é certamente uma conversa nova, como disse, embora ela deseje, obviamente, possuir as mesmas peças do seu passado tal como os outros também têm. Portanto, ela pergunta. Mesmo quando sabe que não tenho as respostas.

Assim, depois de conversas destas, fico a pensar sobre como é que ela ficará a sentir-se. Ela tem uma relação muito próxima comigo, tão próxima que por vezes é um pouco intensa – duma forma insegura e nervosa, mas ela tem esta necessidade de estar próxima de mim, e ela queria determinada informação da minha parte, informação essa que não lhe consegui dar e isto prova, uma vez mais, que ela não vem de mim e do QM. Esta ausência de informação básica prova que houve outras pessoas na sua vida em certa altura que não estão lá agora, e nós não sabemos nada sobre quem são.

Isto acontece por fases. Por vezes, a MB e eu falamos sobre o seu passado, mas na maioria dos dias não o fazemos. Trago o assunto à baila sempre que o considero adequado. Por vezes, quando temos estas conversas, ela faz uma pergunta. Mas na maior parte das vezes, não faz perguntas. Se eu quisesse, diria a mim própria que ela não está interessada no seu passado. Poderia convencer-me de que, porque ela raramente toca no assunto, não está interessada nem é curiosa. Porque quando falo no assunto, ela por vezes ouve e noutras muda de assunto, e porque não se mostra excessivamente interessada, eu poderia convencer-me de que não lhe interessa. Eu poderia permitir-me deixar para trás este assunto da identidade, um assunto muito confuso e difícil. Claramente, poderia convencer-me a mim própria de que ela não está interessada.

Mas isso seria errado.

Considerando a personalidade da MB, eu sei que ela não consegue fazer demasiadas perguntas de prospecção. Ela tem um medo profundo das respostas. Cabe-me a mim, então, dar-lhe a informação – deixá-la à sua disposição, para que possa ver e ouvir, e ajudá-la a responder a questões não-perguntadas e ter fé para além da fé de que estou a dar-lhe aquilo de que precisa.

Aqueles de vós que me têm acompanhado desde há algum tempo, sabem que numa das nossas Buscas Pela Família Natural, uma mulher que foi entrevistada lembrava-se da MB. Deu-nos bastantes detalhes, incluindo o facto que ela trazia dinheiro consigo e um bilhete. No bilhete estava escrito um nome, nome esse que presumimos ser o seu nome próprio dado pela sua Mãe Biológica, e que esta mulher partilhou connosco. Aqueles de vós que têm estado comigo, lembrar-se-ão também do quanto me debati sobre como e quando dar (oferecer***) este nome à MB. Levou algum tempo, porque era algo tão precioso - este nome, que eu não o conseguia simplesmente proferir como se fosse uma informação tipo brinde. A sua importância fez-se sentir em mim.

Numa determinada altura, encontrei a oportunidade de falar disto com a MB e saiu. Disse-lhe o seu nome original. Disse-lhe que veio da sua Mãe. Disse-lhe que é precioso (e privado, se assim for a sua vontade). Disse-lhe quão bonito é e que se desejasse ser tratada por esse nome, e não por aquele que lhe déramos, bastaria dizê-lo e nós assim o faríamos e a trataríamos pelo nome que a sua Mãe escolhera para si.

Ela ouviu. Guardou tudo consigo. E não falou sobre o assunto.

Comprei-lhe o livro que a Maggie sugeriu (obrigada Maggie!) The Three Names Of Me. Tentei ler-lho, mas não consegui. Chorei de cada vez que comecei o livro. Estou a falar de choro tipo baba e ranho e soluços, que me deixou sem fala. Deixei o livro no quarto dela junto com todos os livros e papéis especiais dela, e sugeri-lhe que o lesse. De vez em quando, perguntava-lhe se o lera, ou se queria que eu tentasse lê-lo novamente, mas ela respondeu sempre que não.

Se eu desejasse ficar sossegada, poderia convencer-me de que ela não está interessada nisto tudo. Poderia fazê-lo porque seria infinitamente mais fácil, diria que ela agora é americana, que é a minha filha e de mais ninguém. Poderia usar a sua hesitação no assunto – porque tudo seria mais simples, como um sinal para deixar de lado o assunto, de que ela não está interessada.

Mas isso seria errado.

Ontem foi Dia de Levar o seu Filho/a para o Trabalho. O QM levou a MB para o trabalho. Dizer que ela estava excitada é eufemismo. A MB estava para além de excitada. Escolheu a sua toilette com o devido cuidado (duh) e preparou uma sacola cheia de canetas e lápis e um bloco de notas, que é o tipo de material que o QM leva para o trabalho. Ela não podia esperar.

Explicámos-lhe que teria de conhecer muitas pessoas, algo que é difícil para ela. Disse-lhe que poderia ser um bom treino e que a terapeuta ficaria muito feliz se ela conseguisse fazê-lo. Orientámo-la sobre como cumprimentar e ser educada no local de trabalho das pessoas, e disse-lhe que deveria olhar as pessoas nos olhos quando estas lhe dissessem “olá” (ou, pelo menos, olhar na direcção dos olhos da outra pessoa) e responder “olá” de volta. O QM disse-lhe quais dos seus colegas é que estavam particularmente interessados em conhecê-la, ou revê-la, para que ela tivesse uma ideia do que deveria esperar, uma delas é uma senhora chinesa que nos ajudou algumas vezes na nossa caminhada com a MB. O QM perguntou-lhe se ela queria conhecer esta colega e a MB disse que sim, mas que não queria ter de lhe falar em chinês.

É justo.

Quando o QM e a MB regressaram a casa, recebi um relatório completo sobre a quantas pessoas ela conheceu e cumprimentou (E olhou nos olhos!) e o QM disse-me que quando ela deu conta de que ainda não tinham encontrado a colega chinesa, foi a própria MB que pediu para a ir conhecer. Quando a encontraram, a MB e a colega do QM falaram um pouco em chinês, uma coisa que ela jurou que não faria. O coração do QM inchou de tanto orgulho. Para nós, conhecer a sua língua nativa permite ter uma porta aberta que nos pode levar às suas raízes e identidade. Vê-la abraçar esta parte da sua vida fez-nos pensar que provavelmente ela está confortável com quem é, ou quem considera ser para si própria. Pareceu correcto.

E depois o QM mostrou-me um desenho que a MB deixou no seu quadro. Incluía todas as coisas que possam esperar da MB: corações, flores, um sol brilhante, uma nota a descrever o desenho dela como “Dia de Levar o seu Filho/a para o Trabalho” e uma versão inspirada da MB do logótipo da empresa do QM.

Mas depois, ao reparar melhor, vi outras coisas. Ela desenhara um par de caracteres chineses: 小 e 大. Suponho que estava a meter-se com o QM e que pensa que estes são os caracteres que ele reconheceria. Ela também escreveu: Wǒ xǐhuan bīngqílín, que quer dizer “eu gosto de gelado”. E depois havia outra coisa.

Vi três palavras escritas em pinyin e, a princípio, não conseguia perceber o que era porque a caligrafia estava difícil. Mas depois pronunciei-o. Era o seu nome chinês. Aquele que lhe foi dado pela sua Mãe. Aquele que pensei que não lhe interessava. Aquele nome que não dissemos em voz alta durante pelo menos um ano. E foi então que percebi que ela tem estado a trabalhar (n)a sua identidade este tempo todo. Quer fale disso ou não, está a pensar no assunto. Demitir-me do assunto, não falar das coisas difíceis convencendo-me de que ela não estaria interessada, não é, simplesmente, uma opção. Porque, claramente, mesmo que ela não fale disto todos os dias, está a pensar no assunto.

Compreender quem somos é um processo difícil – mesmo quando temos histórias familiares intactas, longa e discriminadamente detalhadas. Quando não temos nada disso, compreender quem somos é muito mais difícil. Não admira que não se queira falar do assunto o tempo todo. É uma tarefa árdua. É um trabalho doloroso. Mas não devemos concluir que o assunto não interessa só porque ela não fala dele. Ela está a tentar perceber quem é, mesmo que não fale disso todos os dias.



Notas da tradução:

* QF #1 = Querido Filho; na língua inglesa, utilizam muito siglas na escrita corrente de tipo DH = Dear Husband (vamos usar QM = Querido Marido), neste caso DS = Dear Son
** epíteto da filha, em Inglês Bicicleta Girl
*** tive algumas dúvidas sobre como traduzir esta passagem, pois trata-se de uma oferenda, na verdade

quarta-feira, 23 de abril de 2014

É preciso assumir que isto trata de ideias de supremacia

~ ~ ~

Há uns anos, após um passeio à beira-mar com uma amiga, deitámo-nos naquela linha de fim de rebentação, recebendo sol e água simultaneamente. Não sei como foi que, num ambiente tão descontraído, veio à baila uma conversa profunda sobre a existência. Às tantas, a minha amiga remata com a sua sentença de fútil em comparação comigo (não sei se eu seria, por antónimo, “útil”), – «Porque, ao contrário de ti, eu sou uma egoísta e uma irresponsável, não me preocupo com nada, só me interessa viajar, concertos, roupas, jantares e copos». Refutei veementemente os títulos com que se presenteara, a frase dela estava correcta excepto apelidar de egoísmo e irresponsabilidade a caracterização que fazia dos seus objectivos de vida.

Para mim, isto é claro como água:
– As pessoas são responsáveis na proporção do cumprimento dos compromissos que assumem.
– As pessoas são egoístas na proporção do prejuízo dos outros em favor da satisfação das suas necessidades acima-de-tudo.

A minha amiga é professora e assume a sua função muito competentemente. A minha amiga diverte-se muito e não prejudica ninguém em função do seu divertimento. A minha amiga consome aquilo que consome, sejam concertos, roupa ou copos, com o dinheiro que ganha do seu trabalho. A sociedade ensinou a minha amiga a apelidar-se de egoísta e irresponsável. Eu chamo a minha amiga de amiga e, fossem necessários epítetos face ao seu estilo de vida, diria “responsável” e “hedonista”. E dispensamos sentimentos judaico-cristãos de culpa. 

~ ~ ~

Hoje de manhã, enquanto tomava café no bar do meu local de trabalho com duas colegas, surge o assunto das barrigas de aluguer. As campainhas tocaram cá dentro, mas não tive a esperteza de sair de cena. Diz a colega nº1 que acha muito bem que se autorizem as barrigas de aluguer que é para ver se eles (“eles” quem?) aprendem(!), que é para não demorarem tanto tempo a dar bebés para adopção. Segurem-me senhores. (subitamente, preciso de um cigarro) Acreditam que eu respondi? Pois. Disse umas coisas sobre a adopção não ser uma fábrica de bebés para satisfazer a frustração biológica dos adultos. Mas ela insistiu e contou a história de uma amiga que visita uma menina numa instituição, uma menina que hoje tem 4 anos e que é visitada por este casal desde que tem 1 anito e meio, mas que o juiz nunca mais a liberta para a adopção. Pum. E eu, de rajada: que essas visitas, com esse objectivo, são exactamente o que não deveria acontecer. Esse casal pensa o quê? Que não precisa de estar em lista de espera junto do resto da plebe? Que simplesmente escolhe a criança que quer e depois é só reclamar dos tribunais? Que essa coisa que se diz da adopção ser uma solução de vida para as crianças em primeiro plano e não uma solução para os adultos que querem ser pais não é apenas uma coisa que se diz, pois que tem fundamentos lógicos, legais e éticos muito sólidos. Que quem quer adoptar tem de respeitar a lei. Que não é ético tornar-se família amiga com o primeiro objectivo da adopção. Existe o ser-se “família amiga” e, depois, existe o ser-se família de acolhimento, o ser-se candidato ao apadrinhamento civil ou à adopção. Não existe o escolher-se a criança e visitá-la com vista à adopção, fora do circuito estabelecido, que parte da Segurança Social e que é esta que escolhe o casal para a criança e não o contrário.
ISTO NÃO É DISCURSO PARA FAZER O BONITO. Isto não é um discurso vazio sobre o SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA.
(definitivamente, depois disto hei-de cravar um cigarro a alguém) 


Vamos a ver, todos já ouvimos falar de histórias de crianças cuja vida está "empatada" em instituições à espera de serem “libertadas” para adopções. A lei provavelmente deveria ser revista, sim. Mesmo considerando a melhor instituição possível, concordamos que as crianças devem ter o direito a uma família, o direito a crescer num ambiente que lhe proporcione um crescimento saudável, e quando falamos de saúde estamos também a falar de saúde emocional, certo?
Há um mundo de coisas para dizer sobre isto, mas a principal lição a tirar é que a adopção deve existir, em primeiro plano, para assegurar uma família à criança. Dito de outra forma, a adopção não serve, em primeiro plano, para proporcionar filhos aos adultos. Não pode haver equívoco em relação a isto.

Falando daqueles que partem para a adopção com uma história de infertilidade por detrás, nós, os adultos temos de aceitar a nossa história, temos de aceitar as condicionantes que nos impediram da descendência biológica. Para ser bruta, em inglês, dizemos “get a grip”. Há que aceitar a realidade e encetar o luto da maternidade, ou paternidade, biológica. E, se pensarmos em recorrer à adopção para substituir o filho biológico tudo vai ser muito mais difícil e pode mesmo correr mal. Quando pensamos em adopção, sonhamos com maternidade e/ou paternidade, e é assim que deve de ser, é um sonho de constituir família - é certo, e o sentimento é que conta - é certo, mas convém estarmos muito conscientes de que é um sonho diferente. Não é pior nem é melhor, mas é definitivamente diferente.

Na adopção não há uma barriga, nem um parto, nem amamentação, nem comparações de parecenças com o pai ou a mãe. Na adopção há, de um lado, um ou dois adultos que desejam ter um filho e, do outro lado, há uma criança que carrega uma mochila cheia de histórias. Do outro lado, não há uma tábua-rasa que vem satisfazer um capricho. Do outro lado, há uma criança que precisa de ajuda para crescer, para aprender a confiar que nem todos os adultos são violentos ou negligentes ou omissos. Do outro lado, há uma criança que, de ter vivido tantos anos numa instituição, não sabe o que é ficar de pijama a comer porcarias (entenda-se guloseimas e afins) e a ver televisão o dia todo. Do outro lado, há uma criança que não sabe o que é poder ir ao frigorífico servir-se daquilo que lhe apetecer, mesmo que mais tarde lhe doa a barriga, porque o frigorífico não é seu e as horas das refeições estão escritas num papel oficial, junto com a ementa do mês e os horários das funcionárias. Do outro lado, se é que alguém os aconchega ao final do dia, não é sempre a mesma pessoa, e essa pessoa está apenas a cumprir uma profissão. Do outro lado, não houve a satisfação das necessidades ao desenvolvimento físico e emocional sem contratempos, sem preocupações de se passar fome ou de ser vítima de violência física e/ou psicológica. Do outro lado, ninguém diz "Não faz mal, a mãe/pai está aqui". Do outro lado, há muito provavelmente o sonho de ter uma família, de se ser protegido e não pode haver, nem há, espaço para aquilo que foi o nosso sonho da barriga, do parto, da amamentação, das comparações de parecenças com o pai ou a mãe. A esta altura, os sonhos que os adultos tiveram não interessam para nada.

A vida não me foi fácil e não me deu uma coisa que sonhei ter, pois, de facto, não foi. Mas eu tive um pai e uma mãe e muito amor e muita protecção e muito riso e muito saber o que é chorar todos juntos, todos juntos – um por todos e todos por um. Tenho a obrigação de ser consciente, altruísta e responsável. Se a vida não me deu o que eu queria, não posso usar a vida de uma criança para tentar fazer uma substituição disso. Nem que o tentasse fazer, seria impossível substituir um sonho com outro. Ah, e tal, posso ficar pelos cantos a suspirar pelo que não tive, é legítimo. Por outro lado, se eu mexer uma palha para tentar substituir o meu sonho usando a vida de uma criança através da adopção, então, meus senhores, poderão apelidar-me de egoísta e irresponsável. A verdadeira, e não a minha amiga de que falei no início do texto.

Eu sei que há muitas variáveis e História por detrás desta salganhada toda que é a adopção, mas os pontos têm de ser colocados nos i. Não se pode iniciar a adopção em equívoco acerca dos direitos nela implicados. Já li demasiadas histórias para tentar escapar ao reconhecimento do que é a adopção para o adoptado. Na adopção, os candidatos têm a obrigação de se informarem. Hoje em dia, temos informação grátis e acessível para todos e não concebo que alguém alegue que não sabe onde ir ler sobre adopção. É preciso procurar saber o que é isso do desenvolvimento, do crescer-se como adoptado, do direito à história natural e aos dados genéticos, do direito aos laços que se desejam. É preciso pôr-se o bem-estar dos filhos à frente do nosso – uma coisa que os pais costumam fazer, certo? Mas, do que tenho lido, sinceramente, fico a pensar que muitos pais adoptivos quando dizem que amam os seus filhos como se tivessem nascido de si, esquecem-se de que (1) eles não nasceram de si, pelo que (2) os seus filhos têm direito à sua história.


Quando chegamos a estes lugares de reflexão, digo-vos que tudo o que foi um dia o sonho de ter um bebé fica noutro universo.

Ficam, assim, a saber que estou a marimbar-me para a problemática dos casais que esperam tantos anos para adoptar um bebé.

A adopção não é uma construção à semelhança duma qualquer supremacia do sonho biológico, mas antes a responsabilidade de assumir o superior interesse do adoptado.

A adopção não é uma alternativa à biologia e eu gostava tanto de viver numa sociedade que compreendesse isto.


Cipreste