terça-feira, 9 de setembro de 2014

a caminho de me tornar numa Schmuck colossal

Felizmente, é raro dar-me chiliques como o de ontem. Nessas horas, parece que, à minha frente, só existe um muro intransponível. Nessas horas, sinto-me próxima de um point of no return. Quando passa, percebo que essa sensação é falaciosa. Nem o muro é intransponível, nem, trespassando esse muro, chegarei a um lugar sem retorno.
Embora todos os tempos sejam sem retorno, e alguns lugares também, o retorno, aqui, surge mais como uma sobrevivência e não como um regresso. Ou seja, a única coisa que não tem remédio é a morte, ao resto, no mínimo, resistimos.
E, quando falo em sensação falaciosa, penso que se pode fazer uma analogia com aquilo que os antigos (provavelmente alguns contemporâneos também) chamariam de “espíritos maus”. Porque uma pessoa como que se sente possuída por uma força que nos impede de ver mais além, de perceber que há uma saída, que aquele momento é só isso – um momento.
São horas difíceis, horas de desesperança.
É uma implosão, consequência de idades sucessivas a fazer por escapar a torvelinhos.

Este fenómeno, a sua constatação, tem uma importância imensa na minha biografia. Vivi um episódio em que esta cegueira tomou conta de mim e me fez vivenciar um dos momentos mais negros da minha existência. Nesse dia, eu disse com todas as minhas forças “não consigo”. Toda a conjuntura à minha volta foi favorável a uma desistência. E eu desisti. Foi nesse dia que eu quis morrer. No entanto, vai uma distância entre achar que a nossa vida não vale nada e acabar com ela. Não fiz nada no sentido de atentar contra a minha própria vida. E continuei a respirar até me sentir gente de novo. Tudo porque me deixei tomar conta pela desesperança.

Sabemos que a vida não é estanque, sabemos que há dias bons e dias maus, ainda assim, nunca estamos preparados para as quedas. 

Quando eu era adolescente e nos sentíamos em baixo, dizíamos que estávamos na fossa. Parece-me uma boa metáfora. Há horas em que perdemos o Norte e nos questionamos sobre a própria inteligência ao evocar outras horas em que achámos algum sentido a isto. Relembrando o Mickey Sabbath, «Qualquer pessoa com alguma inteligência compreende que está destinada a levar uma vida estúpida porque não há outra espécie de vida».

Depois, há qualquer coisa que nos impele a seguir em frente. Conformamo-nos que é isto que temos e admitimos que há horas bem passadas. As sensações físicas sossegam, a aflição esvai-se. A humanidade que há em nós leva-nos à conciliação e damos por nós a seguir em frente. 

Não acho que o Universo ande a conspirar contra, nem a favor (já agora), a minha vida. Acho que somos uma cambada de acasos, mas não tenho como afiançar. Os dias enchem-se de acontecimentos aos quais vou encontrar sentidos e que uso para fazer ligações. Falamos do medo, somos uma cambada de medos que podemos ligar uns aos outros. Porque estamos todos no mesmo patamar de conhecimento sobre o mistério da vida.

Hoje, o Google festeja Tolstoi, autor de um dos livros da minha vida – A Morte de Ivan Ilitch. Podem ler sobre o livro aqui. Também concordo que cada página é como um espelho. E estou certa de que o relerei mais vezes. Preciso de me lembrar amiúde da nossa ignorância.

Ontem, uma pessoa que me é muito querida, que faz parte do meu bem-querer, partilhou este post no facebook com a legenda “me too”. Quando vi, fiquei em pânico. Fiquei aflita porque não posso ver que alguém se sinta na fossa, impotente, nesse mesmo lugar em que eu, ainda ontem, me sentira. Corri a dizer-lhe que vai ficar tudo bem, que são horas que devemos tentar fazer com que sejam pequenas, que devemos breathe in e breathe out e, logo-logo, you're gonna be alright.
Disse-lhe tudo o que o Chaparro me havia dito horas antes ao tentar ajudar-me.

Mais tarde, quando o Chaparro chegou a casa e lhe falei sobre tudo isto e lhe disse que já me sentia melhor, rematei, citando o meu amigo Sabbath, que, um dia, vou ser uma Schmuck colossal:

«As parvoíces em que temos de nos meter para chegarmos onde temos de chegar, a extensão dos erros que precisamos de fazer! Se nos informassem antecipadamente de todos os erros, diríamos não, não posso fazer isso, têm de arranjar outro qualquer, eu sou demasiado esperto para fazer essas asneiras. E responder-nos-iam, nós temos confiança, não te preocupes, e nós responderíamos não, nada feito, precisam de um schmuck muito maior do que eu, mas eles repetiriam que têm confiança que somos a pessoa indicada, de que evoluiremos para um schmuck colossal mais conscienciosamente do que podemos começar sequer a imaginar, de que cometeremos os erros numa escala que nem podemos sonhar agora: porque não existe nenhuma outra maneira de atingir o fim.»
in Teatro de Sabbath de Philip Roth
Publicações dom Quixote, Colecção Ficção universal, 2000
Gosto da palavra schmuck.

Cipreste

3 comentários:

Ana disse...

Inspirador. Quando escreves, parece que me estou a ler.

Anónimo disse...

Bom trabalho e boa sorte!!!!!

Cipreste disse...

Beijinhos, Mãe Sabichona e Anónimo/a :)