sexta-feira, 4 de março de 2016

a ridícula ideia disso

Por altura do falecimento do meu pai, saiu em Portugal o livro A Rídicula Ideia de Não Voltar a Ver-te de Rosa Montero. Já tinha lido artigos dela mas nunca tinha lido um livro. Tinha-a ouvido uma vez no Correntes de Escritas (não, não sou uma fã-arranca-cabelos, fui lá duas vezes, gostei e bastou-me) e gostei muito dela, do seu olhar, da sua doçura, da sua inteligência. Fiquei com a nota mental para a ler. Foi o primeiro livro que li sem o meu pai. (todos fazemos exercícios das primeiras vezes)

Fiquei boquiaberta quando vi o livro, quando li o seu título.
Obrigou-me a lê-lo porque, de facto, a ideia de não voltar a ver o meu pai é das coisas mais ridículas da minha existência.

Gostei bastante, acresce o que aprendi sobre Madame Curie e a certeza de ser uma feminista. Eu até podia ter-me sentido defraudada pelo miolo do livro o que não interessaria para nada. Bastava ter comprado um livro em branco com a capa deste (foto incluída, que é muito boa) e sentir-me-ia uma cliente satisfeita. O título vale o preço do livro. O título serviu-me para horas de solidão neste enigma que é o presente sem o meu pai, a ideia de futuro sem o meu pai. O título vale que o livro seja levado para o café e que fiquemos ali a mirá-lo como quem está a ler a sua vida para trás por causa da tal ideia ridícula. 

O título vale-me pela ideia de prisão perpétua num instante, que não conseguimos definir no tempo, quando nos encontramos de luto. E eu acho que estamos de luto para sempre quando alguém que nos é querido parte, porque também é para sempre. E não, não falo do período de nojo que consta nos dicionários. E não, não estou a falar das fases do luto, nem de Kubler-Ross nem de outros. Embora fale de um momento, de um instante, refiro-o como algo contínuo e ininterrupto, porque se trata de “Não Voltar a Ver-te” da “Rídicula Ideia” disso. E isso nunca há-de passar. A menos que nos voltemos a ver.

Ali estamos e repetimos em voz baixa “A Rídicula Ideia de Não Voltar a Ver-te”, a ver se somos apanhados por alguém que nos pergunte “o que disseste?”. E nós respondemos “nada, nada” e voltamos a repetir “A Rídicula Ideia de Não Voltar a Ver-te”. O meu cérebro costuma fazer umas ligações que nem sempre consigo explicar, por exemplo, ilustro mentalmente este momento com a memória desta cena do enorme filme Big Fish:



Mas eu não vinha cá falar deste livro, vinha falar daquele que estou a ler agora: O Ano do Pensamento Mágico de Joan Didion.

Bru-tal. 

Às vezes, dá-me vontade de dizer palavrões, outras vezes, obriga-me a gargalhadas. A sério, há dias estava num café com a Magnólia, ela estudava e eu lia, e dei uma gargalhada que cortou ali o ar de forma um pouco inusitada. Uns segundos depois estava com os olhos marejados de lágrimas.

Não vou fazer de spoiler, achei apenas que era minha obrigação vir fazer a recomendação do livro. Foi-me aconselhado por uma amiga que perdeu o pai um ano antes de eu ter perdido o meu. A autora não me era desconhecida, mas também nunca a tinha lido. Não encontrei uma edição em Portugal, pelo que o mandei vir pelo Book Depository, em inglês. 

Bastou-me esta citação dela, encontrada na internet quando a pesquisei, para me convencer de que nos iríamos dar bem: I write entirely to find out what I'm thinking, what I'm looking at, what I see and what it means. What I want and what I fear.

Tenho andado a tentar solucionar esta coisa de “fazer o luto” versus “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” e ler este livro está a ajudar-me a sentir muito acompanhada na forma de pensar (consequentemente de sentir) este sofrimento. É que, reparem, faz-me todo, todo o sentido seguir o raciocínio do pensamento mágico aliado à ridícula ideia de não voltar a ver os nossos entes queridos.

Só assim consigo começar a dar uma imagem ao meu luto.

Porque nós, os em luto, damos uma imagem ao nosso luto, não damos?
Se não. Então, como fazem? Eu faço isso, dou imagens às coisas, construo maquetes mentais. Às vezes, construo mesmo maquetes verdadeiras, chamo-lhes instalações e às vezes chego mesmo a mostrá-las publicamente.

Colocadas as coisas assim, talvez possa assumir que torno públicas as minhas dores. 

Faz tudo parte do tornar o nosso snetimento em algo concreto. Tocar no que se torna fisicamente simbólico do nosso sentir. Como a Joan Didion diz na citação acima, mas nas várias materializações, para além da escrita, ou, juntamente com a escrita - para perceber o que estou a pensar, para onde estou a olhar, o que estou a ver e o que significa. O que desejo e o que receio.

Chego sempre à conclusão de que é melhor se falarmos das coisas. Mostrar é como falar.

Não é o vício de escarafunchar, de buscar sangue numa ferida em quase total cicatrização. Não é nada disso. Uma ferida em cicatrização é outra coisa. Isto do luto é toda uma outra dimensão, para lá das feridas. Mesmo quando sobram feridas do passado às pessoas em luto.

Se ninguém fala disto anda para aí tudo a pensar que está maluco e, afinal, só estamos mas é todos a fazer essa coisa esquisita a que se dá o nome de processo. O que me encanita um bocado quando chego a esta ideia de processo é a necessidade de o compartimentar em fases e dar-lhes nomes definitivos. Digo eu, que não sou psi e não preciso dessas ferramentas, ou porque simplesmente não me consigo encaixar nas teorias que conheço (também não conheço assim tantas). 



Voltando ao livro, a citação que o marca e que está impressa a letras douradas na edição que tenho é esta: Life changes fast. Life changes in the instant. You sit down to dinner and life as you know it ends.

Parece banal, não é? Hahaha. Deixem-me rir. Not.

O pai da minha amiga teve morte súbita, de manhã foi às compras, à tarde faleceu. O meu pai teve um percurso de 14 anos de doença oncológica, com 4 tumores primários (um case study), sobreviveu a uma série de coisas contra todas as probabilidades e, mesmo assim, a morte dele aconteceu num instante. Porque agora estamos e no momento seguinte não estamos. Com 14 anos de preparação ou sem qualquer preparação. Mesmo que sejam processos diferentes, a partida, aquele instante é que marca a passagem da era sem ideias ridículas para a era com ideias ridículas.

Joan Didion, na minha interpretação, não se deixa ficar pelos factos óbvios. Volta a todos os lugares necessários. E é aqui que me sinto tão acompanhada por ela. Não se trata apenas de revisitar memórias nem tão-pouco de ficar preso no exercício “o que é que eu poderia ter feito melhor”. Trata-se de reformular todo o nosso pensamento dentro da ideia ridícula de não voltar a ver aquela pessoa. 

Por vezes, tenho vontade de fazer uma birra. Bater com os pés e dizer que não, que não é possível que  nunca mais veja o meu pai. Mas isto passa-me num instante. Ou, estou convencida de que passa e, afinal, este parlapiê todo não é senão prova disso ;)

Quando digo baixinho “A Rídicula Ideia de Não Voltar a Ver-te” estou apenas à espera da minha resposta, da minha submissão à ideia. Hoje ainda não é o dia. Ainda tenho de caminhar muito. Talvez para sempre.

Não sei se fiz algum sentido, a Joan Didion também escreve: “These people who have lost someone look naked because they think themselves invisible.” 


Deixo-vos com este excerto:

“Grief turns out to be a place none of us know until we reach it. We anticipate (we know) that someone close to us could die, but we do not look beyond the few days or weeks that immediately follow such an imagined death. We misconstrue the nature of even those few days or weeks. We might expect if the death is sudden to feel shock. We do not expect the shock to be obliterative, dislocating to both body and mind. We might expect that we will be prostrate, inconsolable, crazy with loss. We do not expect to be literally crazy, cool customers who believe that their husband is about to return and need his shoes. In the version of grief we imagine, the model will be "healing." A certain forward movement will prevail. The worst days will be the earliest days. We imagine that the moment to most severely test us will be the funeral, after which this hypothetical healing will take place. When we anticipate the funeral we wonder about failing to "get through it," rise to the occasion, exhibit the "strength" that invariably gets mentioned as the correct response to death. We anticipate needing to steel ourselves the for the moment: will I be able to greet people, will I be able to leave the scene, will I be able even to get dressed that day? We have no way of knowing that this will not be the issue. We have no way of knowing that the funeral itself will be anodyne, a kind of narcotic regression in which we are wrapped in the care of others and the gravity and meaning of the occasion. Nor can we know ahead of the fact (and here lies the heart of the difference between grief was we imagine it and grief as it is) the unending absence that follows, the void, the very opposite of meaning, the relentless succession of moments during which we will confront the experience of meaninglessness itself.” 

Uma vez mais, desculpem lá qualquer coisinha pelo tema mais sorumbático, mas temos de falar de tudo.

Até já,
Cipreste

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