quarta-feira, 30 de abril de 2014

da boca dos outros

Hoje trago-vos um post traduzido por mim do inglês para o português, pois achei que o assunto merece não ficar perdido sem tradução, trata de identidade e da obrigação dos pais adoptivos em não fechar os olhos à biografia dos filhos prévia à adopção.
Foi através desta moça, muito honesta nas suas reflexões e consequentemente na sua escrita, que encontrei o livro Adoption Reunion in the social media age.
Mesmo sem saber ainda quem vai ser meu filho/a(s), enquanto candidata à adopção nacional, há uma série de questões relativas à cultura às quais eu e a minha família seremos poupados. Ainda assim, restará muito sobre a identidade que percebo agora poder vir a ser um problema se não for bem encarado por parte dos pais adoptivos, por nós. O livro que refiro deu-me uns belos abanões sobre coisas de que nunca me lembraria se não as lesse ou, então, só no momento em que as fosse vivenciar. Neste momento, eu e o Chaparro temos muito presente questões sobre o direito da pessoa adoptada à sua história, ao seu passado, aos seus dados genéticos e origens.
Deixo uma passagem da página 29 do livro, traduzida por mim, sobre o processo de se reconhecer a necessidade à própria biografia e os resultados de procurar negligenciar essa necessidade:

«Olhando agora para trás, para os meus primeiros anos, consigo perceber de que forma a separação da minha família original me afectou ao longo da vida; Eu simplesmente não reconheci os sinais na altura. Ter-me-ia descrito como uma pessoa feliz, mas agora percebo que em grande parte do tempo eu estava mais próxima da dormência.»

Não sabemos como se desenrolará a nossa história, mas sentimos a premência de nos mantermos atentos a estas questões. Felizmente, há os blogs e os livros.

Segue-se o texto, via Casa Bicicleta.
Enjoy,
Cipreste





Enquanto mãe de uma criança adoptada, passo o tempo a pensar em questões de identidade. O que nos faz quem somos? O que é importante para a nossa noção de nós mesmos e o nosso lugar na família? Como posso ajudar a minha filha na sua busca pelo seu eu? Devo envolver-me nesta busca? Estas são coisas sobre as quais penso.

Provavelmente seja o contraste entre ter filhos biológicos e uma adoptada que me traz esta questão de forma mais presente. Os meus rapazes, como a maioria de nós, têm a sua identidade como algo garantido, os seus antepassados, as suas origens, as parecenças… todas as pequenas peças individuais que fazem de nós, nós. Ter acesso às histórias e fotografias e anedotas a qualquer momento é, enfim, uma dádiva. É uma coisa que a maioria de nós tem e em que a maioria de nós nunca tem de pensar. Está simplesmente ali. De cada vez que desejamos pensar acerca de quem somos e de onde vimos… não temos de pensar demasiado. A história está ali ao nosso alcance.

Quarta-feira foi o aniversário do QF#1*. Casualmente, mencionei ao jantar que lhe queria ter ligado às 10h03 da manhã porque essa é a hora exacta do seu nascimento. E ainda acrescentei num Sábado, estava a chover. O QM* perguntou a que horas nascera o QF#2 e eu respondi.

À medida que a conversa decorria, a Menina da Bicicleta (MB)** perguntou a que horas é que eu nasci? Ela já me tinha perguntado isto antes e já tivemos outras conversas sobre o facto de não sabermos pormenores sobre o seu nascimento. Na verdade, não sabemos nada. Não creio que esta conversa tenha sido particularmente dolorosa para a MB, não é certamente uma conversa nova, como disse, embora ela deseje, obviamente, possuir as mesmas peças do seu passado tal como os outros também têm. Portanto, ela pergunta. Mesmo quando sabe que não tenho as respostas.

Assim, depois de conversas destas, fico a pensar sobre como é que ela ficará a sentir-se. Ela tem uma relação muito próxima comigo, tão próxima que por vezes é um pouco intensa – duma forma insegura e nervosa, mas ela tem esta necessidade de estar próxima de mim, e ela queria determinada informação da minha parte, informação essa que não lhe consegui dar e isto prova, uma vez mais, que ela não vem de mim e do QM. Esta ausência de informação básica prova que houve outras pessoas na sua vida em certa altura que não estão lá agora, e nós não sabemos nada sobre quem são.

Isto acontece por fases. Por vezes, a MB e eu falamos sobre o seu passado, mas na maioria dos dias não o fazemos. Trago o assunto à baila sempre que o considero adequado. Por vezes, quando temos estas conversas, ela faz uma pergunta. Mas na maior parte das vezes, não faz perguntas. Se eu quisesse, diria a mim própria que ela não está interessada no seu passado. Poderia convencer-me de que, porque ela raramente toca no assunto, não está interessada nem é curiosa. Porque quando falo no assunto, ela por vezes ouve e noutras muda de assunto, e porque não se mostra excessivamente interessada, eu poderia convencer-me de que não lhe interessa. Eu poderia permitir-me deixar para trás este assunto da identidade, um assunto muito confuso e difícil. Claramente, poderia convencer-me a mim própria de que ela não está interessada.

Mas isso seria errado.

Considerando a personalidade da MB, eu sei que ela não consegue fazer demasiadas perguntas de prospecção. Ela tem um medo profundo das respostas. Cabe-me a mim, então, dar-lhe a informação – deixá-la à sua disposição, para que possa ver e ouvir, e ajudá-la a responder a questões não-perguntadas e ter fé para além da fé de que estou a dar-lhe aquilo de que precisa.

Aqueles de vós que me têm acompanhado desde há algum tempo, sabem que numa das nossas Buscas Pela Família Natural, uma mulher que foi entrevistada lembrava-se da MB. Deu-nos bastantes detalhes, incluindo o facto que ela trazia dinheiro consigo e um bilhete. No bilhete estava escrito um nome, nome esse que presumimos ser o seu nome próprio dado pela sua Mãe Biológica, e que esta mulher partilhou connosco. Aqueles de vós que têm estado comigo, lembrar-se-ão também do quanto me debati sobre como e quando dar (oferecer***) este nome à MB. Levou algum tempo, porque era algo tão precioso - este nome, que eu não o conseguia simplesmente proferir como se fosse uma informação tipo brinde. A sua importância fez-se sentir em mim.

Numa determinada altura, encontrei a oportunidade de falar disto com a MB e saiu. Disse-lhe o seu nome original. Disse-lhe que veio da sua Mãe. Disse-lhe que é precioso (e privado, se assim for a sua vontade). Disse-lhe quão bonito é e que se desejasse ser tratada por esse nome, e não por aquele que lhe déramos, bastaria dizê-lo e nós assim o faríamos e a trataríamos pelo nome que a sua Mãe escolhera para si.

Ela ouviu. Guardou tudo consigo. E não falou sobre o assunto.

Comprei-lhe o livro que a Maggie sugeriu (obrigada Maggie!) The Three Names Of Me. Tentei ler-lho, mas não consegui. Chorei de cada vez que comecei o livro. Estou a falar de choro tipo baba e ranho e soluços, que me deixou sem fala. Deixei o livro no quarto dela junto com todos os livros e papéis especiais dela, e sugeri-lhe que o lesse. De vez em quando, perguntava-lhe se o lera, ou se queria que eu tentasse lê-lo novamente, mas ela respondeu sempre que não.

Se eu desejasse ficar sossegada, poderia convencer-me de que ela não está interessada nisto tudo. Poderia fazê-lo porque seria infinitamente mais fácil, diria que ela agora é americana, que é a minha filha e de mais ninguém. Poderia usar a sua hesitação no assunto – porque tudo seria mais simples, como um sinal para deixar de lado o assunto, de que ela não está interessada.

Mas isso seria errado.

Ontem foi Dia de Levar o seu Filho/a para o Trabalho. O QM levou a MB para o trabalho. Dizer que ela estava excitada é eufemismo. A MB estava para além de excitada. Escolheu a sua toilette com o devido cuidado (duh) e preparou uma sacola cheia de canetas e lápis e um bloco de notas, que é o tipo de material que o QM leva para o trabalho. Ela não podia esperar.

Explicámos-lhe que teria de conhecer muitas pessoas, algo que é difícil para ela. Disse-lhe que poderia ser um bom treino e que a terapeuta ficaria muito feliz se ela conseguisse fazê-lo. Orientámo-la sobre como cumprimentar e ser educada no local de trabalho das pessoas, e disse-lhe que deveria olhar as pessoas nos olhos quando estas lhe dissessem “olá” (ou, pelo menos, olhar na direcção dos olhos da outra pessoa) e responder “olá” de volta. O QM disse-lhe quais dos seus colegas é que estavam particularmente interessados em conhecê-la, ou revê-la, para que ela tivesse uma ideia do que deveria esperar, uma delas é uma senhora chinesa que nos ajudou algumas vezes na nossa caminhada com a MB. O QM perguntou-lhe se ela queria conhecer esta colega e a MB disse que sim, mas que não queria ter de lhe falar em chinês.

É justo.

Quando o QM e a MB regressaram a casa, recebi um relatório completo sobre a quantas pessoas ela conheceu e cumprimentou (E olhou nos olhos!) e o QM disse-me que quando ela deu conta de que ainda não tinham encontrado a colega chinesa, foi a própria MB que pediu para a ir conhecer. Quando a encontraram, a MB e a colega do QM falaram um pouco em chinês, uma coisa que ela jurou que não faria. O coração do QM inchou de tanto orgulho. Para nós, conhecer a sua língua nativa permite ter uma porta aberta que nos pode levar às suas raízes e identidade. Vê-la abraçar esta parte da sua vida fez-nos pensar que provavelmente ela está confortável com quem é, ou quem considera ser para si própria. Pareceu correcto.

E depois o QM mostrou-me um desenho que a MB deixou no seu quadro. Incluía todas as coisas que possam esperar da MB: corações, flores, um sol brilhante, uma nota a descrever o desenho dela como “Dia de Levar o seu Filho/a para o Trabalho” e uma versão inspirada da MB do logótipo da empresa do QM.

Mas depois, ao reparar melhor, vi outras coisas. Ela desenhara um par de caracteres chineses: 小 e 大. Suponho que estava a meter-se com o QM e que pensa que estes são os caracteres que ele reconheceria. Ela também escreveu: Wǒ xǐhuan bīngqílín, que quer dizer “eu gosto de gelado”. E depois havia outra coisa.

Vi três palavras escritas em pinyin e, a princípio, não conseguia perceber o que era porque a caligrafia estava difícil. Mas depois pronunciei-o. Era o seu nome chinês. Aquele que lhe foi dado pela sua Mãe. Aquele que pensei que não lhe interessava. Aquele nome que não dissemos em voz alta durante pelo menos um ano. E foi então que percebi que ela tem estado a trabalhar (n)a sua identidade este tempo todo. Quer fale disso ou não, está a pensar no assunto. Demitir-me do assunto, não falar das coisas difíceis convencendo-me de que ela não estaria interessada, não é, simplesmente, uma opção. Porque, claramente, mesmo que ela não fale disto todos os dias, está a pensar no assunto.

Compreender quem somos é um processo difícil – mesmo quando temos histórias familiares intactas, longa e discriminadamente detalhadas. Quando não temos nada disso, compreender quem somos é muito mais difícil. Não admira que não se queira falar do assunto o tempo todo. É uma tarefa árdua. É um trabalho doloroso. Mas não devemos concluir que o assunto não interessa só porque ela não fala dele. Ela está a tentar perceber quem é, mesmo que não fale disso todos os dias.



Notas da tradução:

* QF #1 = Querido Filho; na língua inglesa, utilizam muito siglas na escrita corrente de tipo DH = Dear Husband (vamos usar QM = Querido Marido), neste caso DS = Dear Son
** epíteto da filha, em Inglês Bicicleta Girl
*** tive algumas dúvidas sobre como traduzir esta passagem, pois trata-se de uma oferenda, na verdade

1 comentário:

Ana disse...

São estes pequenos (grandes) pormenores que nos escapam.