sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Fazer desaguar emoções

Ontem voltei ao trabalho.
Ao final do dia, não me apeteceu apanhar o autocarro directo para casa e enfiei-me naquele que passa pelo rio. Gosto de passar na baixa de olhos pegados no rio. Não sou propriamente fã dos Ala dos Namorados, mas evoco sempre aquela passagem que diz “São os loucos de Lisboa/ Que nos fazem duvidar/ Que a Terra gira ao contrário/ E os rios nascem no mar”. Um facto sobre mim: preciso de exercitar a desconstrução constantemente.
Ontem sentia-me só. E cansada.
Dos 13 dias úteis de férias que tive (o Chaparro teve 10), passámos 5 em hospitais com familiares e os restantes a procurar transformar medos em esperança. Todos sabemos que um mal nunca vem só. É um facto sobejamente conhecido sobre as tempestades. Após 7 semanas de baixa médica, regressei ao trabalho fresca como uma alface, cheia de energia para trabalhar e boa disposição. Antes de partir para férias, cheguei até a confessar que não sentia necessidade delas. Pum. Toma lá que é para aprenderes. Na primeira semana, passámos logo 3 dias às voltas nos hospitais. Na segunda semana, deixei-vos aqui um postal de “até já”. Chegámos à praia nesse Domingo para regressar de imediato na 3ªfeira para uma nova ronda, não planeada, de hospital. Não voltámos à praia desde então, ficámos por perto uns dos outros. Encontrámos forma de nos distrair e penso que conseguimos deixar tudo mais ou menos controlado.
O Chaparro voltou ao trabalho na 2ªfeira, eu ainda fiquei longe de casa a amanhar algumas pontas soltas. O Chaparro encontrou um postal na caixa do correio para levantar uma carta registada. Regressei a casa na 4ªfeira. O Chaparro esperou por mim para irmos juntos aos CTT levantar a carta que sabíamos trazer a notícia do seu despedimento. É a crise, senhores e senhoras.

É muita coisa. Nem saberia por onde começar ao tentar explicar aquilo que, de certo, compreenderão. Os serões nesta casa têm sido ora silenciosos, ora cheios de planos e ideias para uma nova vida. Eu brinco e evoco o Primeiro-ministro deste país, cujo nome não nomeamos neste blog, e digo que temos de fazer do desemprego uma oportunidade de vida. Digo que talvez seja a hora do Chaparro mudar de vida e procurar fazer algo que o faça mais feliz, mais realizado. Depois ficamos em silêncio e não confessamos os nossos reais pensamentos um ao outro. E volto a evocar outra personalidade inominável neste blog, aquela escritora que se lamentou há tempos na imprensa por ter tido de fazer um “downsizing” no seu estilo de vida. Tento colocar algum humor nesta coisa. Logo eu, pessoa que se tem como muito séria, pessoa que, afinal, nem sequer sabe se é séria ou uma espécie de palhacita, pessoa que agora fica exausta à mais pequena reflexão e que conclui simultaneamente que isto é difícil mas que sabe que não se pode queixar da sua sorte neste mundo tão hostil – sim, vislumbrei as notícias do mundo há dias e claro que fiquei doente. Ai, vidinha medíocre de pessoa ultraformatada (ou será ultralimitada?) por aforismos populares. Escrevo “vidinha medíocre” e recordo esta passagem:

«Sorvendo a borra da sua própria chávena, Sabbath levantou finalmente o olhar do submerso erro crasso que era o seu passado. Por acaso o presente também estava em curso, construído dia e noite como os navio-transporte de tropas em Perth Amboy durante a guerra, o venerável presente que recua até à Antiguidade e prossegue a direito da Renascença até hoje – era a esse presente sempre-a-começar e interminável que Sabbath renunciava. Acha repugnante a sua inexauribilidade. Só por isso devia morrer. E depois, que importa que tenha levado uma vida estúpida? Qualquer pessoa com alguma inteligência sabe que está a levar uma vida estúpida mesmo enquanto está a levá-la. Qualquer pessoa com alguma inteligência compreende que está destinada a levar uma vida estúpida porque não há outra espécie de vida. Não existe nada de pessoal nisso. No entanto, lágrimas infantis marejam os seus olhos quando Mickey Sabbath – sim o Mickey Sabbath, daquele bando selecto de sete mil milhões de idiotas de primeira apanha que constituem a história humana – diz adeus à sua unicidade com um meio entaramelado e profundamente dolorido “Quem liga a mínima?”.»
in Teatro de Sabbath de Philip Roth 
Publicações dom Quixote, Colecção Ficção Universal, 2000

Sinto-me acompanhada de novo. O Sabbath, esse porcalhão, essa personagem mais que improvável no meu rol de amigos, minha alma gémea, faz-me sempre sentir acompanhada. Lembro o título de outro livro: ninguém morre sozinho e aceno a cabeça em assentimento.
Tenho a cachola feita em água e urge procurar fórmulas para o lugar de equilíbrio. Eu sei que vou conseguir. Vamos. This too, shall pass.

E a adopção? Onde fica a adopção no meio disto tudo? Precisamente aí: no meio. A adopção continua a ser o centro das nossas vidas. E também continua a ser algo informe. É um sonho, é o nosso sonho, tentamos dar-lhe forma, falando, lendo e escrevendo, mas só terá forma quando tiver rosto, ou rostos. Tentamos fugir dos sentimentos ambíguos que a adopção vai tomando ao longo desta espera que agora começa a parecer isso mesmo: uma espera. Uma espera cuja data final é absolutamente incerta. E a incerteza, amigos, é um sentimento bastante difícil de gerir nesta fase das nossas vidas. Isto não é uma gravidez. Não estamos grávidos.

Oiço muitas pessoas falar da gravidez na adopção, a gravidez do coração, mas não concordo com a aplicação do termo ao tempo em que esperamos pela proposta da equipa.
Não, nós não estamos grávidos. Nós estamos a tentar engravidar. Quando a equipa de adopções nos diz que temos tudo para ser pais, é como quando o médico diz a um casal que está tudo bem, ele e ela estão aptos a engravidar. Depois, é ir para casa e esperar que num dos meses seguintes apareçam os dois tracinhos vermelhos no teste. No nosso caso, voltámos para casa e esperamos que o telefone toque. É nesse dia que se confirmará a gravidez. Não no dia em que recebemos a certificação.
Uma mulher não está grávida a partir do momento em que decide engravidar (sei do que falo). Uma mulher está grávida a partir do momento em que confirma a gravidez biológica. Aquele filho, aquele alvo do seu amor é real. Existe.
Eu sei que os meus filhos existem, já nasceram, de outra mãe cuja vida infelizmente se enviesou. Estão algures neste país, ainda com os pais, ou há anos numa instituição. À espera. E nós também, à espera.
Mas os meus filhos ainda não estão no meu coração. Porque não lhes conheço o nome, são apenas uma ideia que amo. Não sei se é um ou uma, ou um e uma, ou dois, ou duas. Preciso saber quantos são os fetos. Preciso que alguém me diga que os seus nomes são reais para, então, colocar a mão sobre o ventre, olhar para dentro a sonhar com os seus nomes, repetidamente.
Não, nós não estamos grávidos. A gravidez na adopção é muito curta, a espera pela concepção é que é longa. Como na infertilidade. É a história a repetir-se.
Creio que é também por isso que os momentos iniciais são relatados como sendo de grandes choques, porque na adopção temos muito menos tempo para sonhar com o real, com quem já existe. Porque na adopção temos muito menos tempo para estar grávidos. Fazendo a matemática, do que tenho lido e ouvido, entre receber uma proposta e o nascimento da família, costuma acontecer tudo no espaço de um mês (máximo dos máximos), ou seja, um nono do tempo de uma gravidez biológica. Já a concepção, parece-me ser o dia em que o juiz declara a criança como disponível para adopção.

Eis-nos, assim, neste lugar de certeza de que a gravidez acontecerá, sem saber quando, neste lugar pouco fácil, pedregoso.

Há momentos em que nos saem desabafos como o do Chaparro, num destes Sábados, enquanto eu arrumava as compras feitas no mercado e ele preparava as brasas para grelhar o peixe: já não faz sentido a ausência dos nossos filhos nesta casa. É verdade, não faz sentido. Ainda assim, vamos esperando e tentando que seja serenamente. Olho o quarto deles com mais parcimónia e uso o quarto de brincar como sala de leitura e para compôr puzzles, num exercício de abstracção.
Sinto uma qualquer importância de não fazer a vida girar à volta desta espera, mas é assim que ela gira. Não estamos a encaixar no ditado Quem espera, desespera, mas não vos vou amaciar a verdade, é difícil. Temos convicções mais ou menos secretas de que já fizemos por merecer que a vida nos fosse um pouco mais meiga. Olhamos à volta, fazemos as contas ao sucedido nos últimos anos, entre divórcios e o nosso encontro, entre o reconstruir de uma vida e as diligências médicas e burocráticas para ser pais, sentimo-nos um pouco escrutinados pela vida. Pensamos que, caramba, não somos más pessoas, merecíamos uma chance de viver algo fora da incerteza. E depois, dá-nos um laivo de lucidez e lembramo-nos de que isto não trata de merecimentos nem de justiça, mas de acasos. Voltamos a assentar pés no chão e sentamo-nos à espera.

Nesta espera, sabe bem encontrar empatia como a que encontrei, escrita por uma senhora com quem, acaso dos acasos, me cruzei no meu percurso académico. Nesta espera de sentimentos ambíguos, por vezes, quando encontramos a empatia alheia, por pessoas do mundo da adopção, do outro lado, como a das palavras que se seguem, conseguimos dar nome às nossas emoções e saber reconhecer que são emoções válidas, que a espécie de dor que sentimos não é um erro nosso:

«A incerteza do tempo que levará até ser concretizada a adopção é outro factor causador de stresse. Ao contrário da gravidez, a duração do tempo do processo de adopção é altamente imprevisível. Este tempo de espera, mesmo após a sua candidatura ter sido aprovada, gera ansiedade, confusão, sentimentos de desamparo e muitas vezes depressão, podendo levá-los a questionar-se sobre o seu direito de serem pais.»
Fernanda Salvaterra in A Criança no Processo de Adopção – Realidades, Desafios e Mudanças
Coordenação de Manuel Matias e Mauro Paulino
Prime Books, 2014

Leio por dois motivos: porque gosto de aprender e porque me faz sentir acompanhada.

Ontem, ao sair do trabalho, sentia-me só e cansada. Após entrar no autocarro, tirei o livro para reler o pequeno excerto sublinhado, para me fazer lembrar que não estou só e que não estou em erro. Momentos depois, entrou no autocarro quase vazio um casal muito parecido com os meus pais. Eu ia sentada no lado certo para poder olhar o rio. A mulher desse casal dirigiu-se para se sentar no lado oposto, o homem chamou-a a sentar-se no meu lado, à minha frente, e disse-lhe “para irmos a olhar o rio”. E ela sentou-se junto dele. Ao passar pelo rio, olhámos os três e eu sussurrei que a Terra gira ao contrário e que os rios nascem no mar.

Deixo-vos com este óleo da praia fluvial do Agroal, onde nos fomos refrescar a meio das peripécias destas férias. Pesquisem e visitem, um conselho de quem se adora banhar nas águas frias do Nabão na piscina do Agroal. 
Foto do óleo foi surripiada ali


Cipreste

4 comentários:

Marta Faustino disse...

Como te percebo amiga (virtual, é claro). Sei do que falas, pois comigo a vida também tem sido complicada...beijinhos (e muita força).

Ana disse...

Fiquei pequenina depois de te ler. A vida não tem sido mesmo nada meiga convosco. E no meio de tanto sofrimento, és uma pessoa muito forte e com uma grande capacidade de "renascer das cinzas". As tuas palavras assim o transparecem. Mas como diz que citas "quem liga a mínima?". Ou o que é que isso interessa se dói na mesma?
Quando vamos acompanhando as vidas por aqui, passamos a senti-las como um pouco com a vida dos nossos e por isso alguma espera estará também deste lado, a torcer para que tudo se componha.
Quando sair do trabalho, vou olhar para o rio e lembrar-me de ti ;) Beijinhos

Cipreste disse...

Beijinhos e muita força também para ti, Marta FG ;)

Eu também sinto e torço pelas vidas que acompanho :) deixas-me sempre um calorzinho, Mãe Sabichona
Muitos beijinhos para ti!

Ana disse...

Olá como eu te compreendo... haja paciência e esperança. Um beijinho Ana