quinta-feira, 2 de julho de 2015

8 meses

Tenho tanto para vos contar que é difícil decidir por onde começar. Os últimos 8 meses foram muito intensos - tão difíceis e tão especiais. Resolvi começar com isto que escrevi e dediquei à minha família no dia em que entregámos no Tribunal de Família e Menores a petição para a adopção plena dos nossos filhos. É uma espécie de exercício em forma de resumo poetico-prático:


Superior Interesse do Amor

Outubro
O telefone tocou
Magnólia e Chaparro Júnior
A hora em que nos vimos pela primeira vez
Papá, mamã
Filha, filho

A vinda para casa
A primeira noite
O primeiro choro
A primeira dor
O primeiro dia de escola
O medo a instalar-se dentro de todos nós

Novembro
Conhecer o mano mais velho e a paixão imediata
Viva a capacidade de amor das crianças
Tios, primos, avós – e a última fotografia tirada com o meu pai
E o resto da vida a acontecer
O primeiro internamento do avô, duas semanas após estarmos juntos
Prepararmo-nos para o pior
Disse o médico
Preparar a rede para o pior
Conhecer a família alargada
Conhecer os amigos dos pais

Os primeiros recados na caderneta dele
A primeira chamada da professora à escola

Dezembro
O segundo internamento do avô
A dor dos dias seguintes
O testemunho do último suspiro do meu pai querido:
Adeus, paizinho,
Não vás, por favor, não vás
Até sempre, paizinho

O pai que os foi buscar ao campo de férias do Natal e lhes disse
“O avô foi embora, nunca mais vai estar connosco”
E a dor dos dias seguintes
O funeral a assinalar o nosso aniversário de casamento
As datas, sempre as datas
Ficarem ao cuidado da família alargada, sem ainda terem estado longe de nós
Os dias seguintes
O meu aniversário e um bolo absurdo com velas
E o Natal mais triste de sempre
(Era para ser o Natal mais feliz de sempre)
O Natal mais triste de sempre
As datas, sempre as datas
E os foguetes de ano novo que se ouviam
Na casa onde o silêncio reinava entre as nossas lágrimas
As datas, agora a contar para trás no que é a memória do meu pai

E o resto do mundo, ingrato, que não parou solenemente

E um Inverno duro e confuso
Os dias mais confusos de sempre
Cheios de medo e incompreensão

A questão: como era possível que aquilo fosse o resultado da minha busca de vida

Janeiro, Fevereiro
Tanta dor
Tanta força a ser necessária
E o amor a tentar pôr-se em bicos dos pés
E os dias com as suas coisas práticas a intrometerem-se
Era necessário assegurar
Refeições, roupa, trabalhos de casa, educação, regras, estabilidade
Amor

E a negridão a aproximar-se para dentro de mim
(Mas o amor já estava em bicos dos pés)
E precisar de ouvir: estão a fazer um bom trabalho
Precisar de votos de confiança, receber silêncio e ausências
Eu caio
E, um dia, receber uma carta generosa
De uma pessoa inesperada
(És uma boa mãe)
Guardar essa carta como um tesouro
E dar graças pelas pessoas bondosas
Levanto-me e grito
Deixo de precisar daqueles que não fazem um extra mile
Nem geográfico, nem emocional
Hoje e para sempre
Contar comigo e com o meu amor
E com as pessoas bondosas

Compaixão e saber perdoar

Março
Dizemos em voz alta: somos um rochedo
«Somos um rochedo.»

O primeiro dia do pai
E o amor
«O amor.»

Abril
Ele faz anos
Nós desdobramo-nos para lhe mostrar: amamos-te
Muito
Três festas: uma no dia, com os amiguinhos
Outra no Sábado seguinte, com os familiares
E no primeiro dia de aulas após as férias da Páscoa
Três festas, três bolos
E ele segue, com o terceiro bolo, a caminho da escola
Com a ajuda do pai, e diz-lhe:
A mãe é uma pessoa amorosa a fazer bolos de anos.

Confirmo o meu sonho:
Ser uma mãe-sempre-em-casa
Mas não posso
Regresso ao trabalho
Regressam alguns pesadelos nocturnos
Resolve-se com dormidas a quatro
Madrugada fora
Viva a cama dos pais
Abaixo quem julga as opções alheias

Ainda Abril:
Os nossos corações dão de si
Libertos do medo
Serenos

Maio
O primeiro dia da mãe
E o amor
Recebo outra carta: dela
«Mãe», diz-me ela, «amo-te»
Duas páginas repletas de juras de amor
Trago-a comigo, para ler em momentos de medo

Serenidade em pleno
Nos corações
Todos
Nos nossos sorrisos
Nos abraços matinais
Viver, agora e para sempre
Até que a morte nos separe

Junho
Ufa, a canseira de final de ano
Somos, como suspeitávamos que iríamos ser,
Pais participantes, lavamos tachos
Servimos sardinhas no arraial da festa de fim de ano
E saímos da escola à meia-noite
Damos um duche a duas crianças felizes que se deitam
Consoladas
Para ter sonhos bons
Abaixo os pesadelos

Lemos cerimoniosamente, na petição ao tribunal,
Escrita com a ajuda da jurista da nossa equipa de adopção:
Superior Interesse da Criança
E choramos
Da solenidade e da verdade
Desta expressão escrita agora dentro da história das nossas vidas

Tantas primeiras vezes, verdades e erros,
Tudo junto e plenamente humano
No superior interesse do amor
Hoje e para sempre
Que a morte só há-de separar-nos dos nossos abraços.

Cipreste

faltam aqui as patinhas do Freixo :)

13 comentários:

Anónimo disse...

Quase chorei a ler este post....não podia chorar no sítio onde estava.... ;)

Anónimo disse...

Não assinei....A_Mar

JoanaM disse...

eu chorei... que texto lindo... Desejo-vos tantas felicidades!
(just for the record: lá em casa, a cama dos pais é um lugar onde se pode ir sempre que há sonhos maus, febres, ou que é preciso um abraço ou mimo extra)

Mar disse...

A minha mãe trabalhou 30 anos na divisão de adopção da segurança social. Ha pouco, em conversa sobre adopção de crianças um bocadinho mais crescidas disse o seguinte: só há um segredo para conseguir construir uma família bem sucedida, que é o amor. É sempre assim, é sempre igual. Portam-se mal, na escola ou em casa? Mostra-se que os amamos. Têm medo, raiva, acessos de tristeza ou cólera? Abracamo-los o tempo que for preciso. É estar lá, estar sempre lá, ter um colo grande e uma cama maior ainda. É o caminho para todas nós, independentemente daaneira como formámos as nossas famílias. ;)

Anónimo disse...

Obrigada Mar pela partilha da tua mâe....de grande, grande importancia. Obrigada.
Kina

p.s. Gosto muito de ti Cipreste e de voces todos. Beijinhos

Ana disse...

Sem palavras Cipreste...

luarte disse...

Adorei este teu resumo poético.
Tão real, autêntico, fiel ao que sentiste, sem fantasias, cheio de incertezas, perguntas. A vida, o desconhecido e o amor, sempre o amor que nos ergue e nos põe em bicos de pés nos momentos mais difíceis, em que achamos que não conseguimos.
Embora não te conhecendo sei que és uma boa mãe.
Um beijinho grande e imensas felicidades para todos.

luarte disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
luarte disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cipreste disse...

obrigada pelas vossas palavras
beijinhos a todas!

Anónimo disse...

Lindo! Tão recheado de sentimentos, tão triste e alegre, tão seguro e incerto, tão cheio de amor!
Muitas felicidades
Beijinhos a uma linda familia
Lia24

Cipreste disse...

Obrigada, Lia :)

Anónimo disse...

Cipreste não posso deixar de elogiar a forma como escreves, um dia podias escrever um livro. Parabéns pela vossa família linda. Imagino o que deve ter sido este antagonismo de emoções, entre a perda do teu pai e a chegada dos teus filhotes. Sejam felizes, pois merecem. Beijocas Ana