quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

E tu, porque é que não adoptas?

Eu podia devolver a pergunta às pessoas, mas não o faço. Porque não devo. Porque isso não se faz. Esta é uma pergunta que só pode ser feita pelos amigos íntimos ou família chegada e muito raramente estes dão um passo à frente para fazer a pergunta, porque sabem que é uma pergunta que não se faz. É simplesmente errado perguntar a alguém porque-é-que-não-adopta. Vou mesmo dizer-vos que é uma pergunta de calibre filha-da-p*tice porque, para além de ser altamente indiscreta, tem lá dentro várias rasteiras emocionais, não se entra pela vida das pessoas adentro, assim, sem licença. Vou repetir: não se pergunta às pessoas porque-é-que-não-adoptam.
Uff.
E argh.

Já há algum tempo que era poupada a isto e no mesmo dia levo com a pergunta duas vezes.

Momento nº1, no bar com uma colega de trabalho.
Eu, inadvertidamente: não me apetece comer, nem o chá me apetece.
Ela: hmmm, se calhar está grávida…
(és tão burra, Cipreste, tinhas obrigação de saber que não tens o direito de desabafar uma indisposição sem ser abalroada pela suspeita de gravidez)
Eu: não, não estou.
Ela: oh, não sabe, pode estar. Não lhe apetece comer, pediu um chá mas nem esse lhe apetece, pode bem estar grávida.
(por favor, caia aqui um raio imediatamente; por favor, existe, deus, e castiga este ser)
Eu: Acredite, não estou grávida.
Ela: oh, mas não quer ter filhos?
(a sério deus, por favor, existe, e vem castigar esta ovelha que fala ao meu lado, juro que vou à missa)
Eu: Não posso.
(és mais burra do que eu pensava, Cipreste, abriste caminho para a pergunta, agora amanha-te)
Ela: oh, e porque é que não adopta?
(diabo, estás aí?)
Eu: logo veremos.
Mas ela insiste: a sério, porque é que não adopta, é tão giro!
Eu: logo veremos.

Momento nº2, ao almoço, sentada junto a duas colegas. Fazem juízos de valor conversam sobre outra colega que está grávida, mas tem uma menina de 2 anos que ainda dorme com o casal. O horror. Colega 1 não tem filhos e inclusive fez 3 fertilizações InVitro. Colega 2 tem uma menina de 2anitos e meio, que já dorme no seu quarto desde a idade em que as crianças devem dormir nos seus quartos. Claro. Eu estou calada, vou acenando com a cabeça quando me interpelam com o olhar.
Continua a superioridade moral e eu não me tenho: Bom, cada família encontrará a solução para si e desde que funcione é o que mais importa. Compreendo as teorias do que é mais preconizado como correcto, mas não sei nem posso dizer como faria se tivesse filhos.
(woohooo, Cipreste, boa! Estiveste tão bem sem abrir a boca até agora, mas tiveste de te enterrar mesmo quando a conversa podia acabar. Bem lançado, Cipreste, estás a ficar cada vez mais esperta)
Colega 2, que saberá da minha história de infertilidade: Porque é que não adopta, Cipreste?
(assim, a frio, sem mais nem menos, levo logo com esta xaropada)
Eu: porque não.
Colega 2: mas porque não, é uma boa solução.
(solução!, será o nome do meio dos meus filhos, é mesmo assim que encaro os meus futuros filhos. not.)
Eu: logo se verá.
E a Colega 1 caladinha que nem um rato. Ah, pois, porque é que ela nunca adoptou, hein? 

Não sei se vos consigo transmitir o desgaste que estas ofertas espontâneas de galhardetes com soluções existenciais provocam. É tão, mas tão intenso e cansativo e… errado. Isto não se faz.
E não me venham falar de boas intenções nem dizer que qualquer mágoa que a pergunta provoque é inadvertida.

Um dia destes, hei-de escrever alguns dos meus pensamentos sobre o processo de decisão para adoptar. Isso são outros quinhentos.

Para já, fica a velha questão: porque é que as pessoas fazem estas perguntas sem parar para pensar na pessoa que têm à frente, medir o nível de intimidade* e pertinência das suas perguntas/sugestões/intervenções? 
(por favor, não me digam que é só porque não conseguem controlar o impulso de dizer tudo o que lhes vem à mente)

* é importante que não se confunda uma certa abertura para se falar de processos de doença e infertilidade com abertura para se fazer mesa redonda de reflexões e decisões tão gigantes e íntimos como a adopção, por exemplo. Quando alguém nos abre uma porta da sua vida não quer dizer que nos tenha convidado a entrar em todas as divisões e acreditem que nestes assuntos infertilidade/adopção cada um tem a sua divisão bem marcada e independente da outra. Qualquer engenheiro da vida sabe isso.
[O momento de metáfora barata que acabaram de ler acima foi totalmente grátis.] You’re welcome. Perdoem-me, este assunto deixa-me com o pezinho no sarcasmo :/

Só mais uma coisa: eu gosto mesmo é da pergunta em Inglês, pelo toquezinho do just. É maravilhoso: why don't you just adopt? Sigam o link e poderão ver que não é só a mim que incomoda e invade.


Bom dia :)



Cipreste

4 comentários:

the clerk. disse...

nunca tinha comentado no blog mas este assunto é-me caro, das pessoas opinarem por tudo e por nada num ímpeto de tentativa de resolução não pedida das vidas alheias. parece-me que as pessoas estão todas irritadas e frustradas com as suas próprias vidas e resolvem fazer juízos de valor e ser invasivas. algumas, terão genuinamente boa intenção e querem ajudar só que não se questionam sobre o que é ajudar verdadeiramente e se a pessoa em causa quer ou precisa de ajuda. já para não falar de que há maneiras de ajudar que são altamente dispensáveis, tudo depende e, para isso, às vezes, nem conhecer a pessoa há décadas é suficiente. outras, parecem-me mesmo apenas mal intencionadas e acreditam que há uma espécie de transferência de mal estar quando chateiam alguém, que o peso que têm é transferido. mas não é.

Cipreste disse...

não, não é ;)

JoanaM disse...

Uma vez li uma lista de boas maneiras para a infertilidade, num site americano dedicado à infertilidade. Na altura tive vontade de o distribuir subtilmente pelo mundo que me rodeava. Controlei-me. Mas já percebi que não me devia ter controlado :) Vou tentar encontrar.

Cipreste disse...

Com tudo o que tem de bom e de mau, os portugueses não querem saber dessas coisas, inclusive agora inventaram o complexo do politicamente correcto... ninguém quer ser apelidado de ser PC :P

creio que há coisas que "a minha parte nascida no Canadá" fará sempre considerar outras opções, sem complexos e eu acho que não faz mal nenhum ler e perceber o que pode ferir sensibilidades alheias e não gosto muito quando acusam as pessoas de serem hipersensíveis ao invés de admitir o erro de inconveniência e quiçá até pedir desculpas :D