quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Mãe Preocupada: o melhor sítio da blogosfera portuguesa

título alternativo ao post: escrita brutal e brilhantemente bela que nos faz exclamar "raisparta"

«Somos iguais

- Veja, por exemplo, a menina é doutora, eu sou isto que não passa do pouquinho que estudei e bem me arrependo, mas que interessa? Somos iguais, mulheres, mães. Somos humanas, não é?
Foi isto umas semanas depois de o mais velho me ter contado que o rapaz dela chegara à escola todo marcadinho nos braços e nas coxas. Confidenciara-lhe em surdina, obrigando-se ao riso para diminuir a vergonha que sentia: um arraial de porrada na noite anterior, estalo e pontapé, por causa de uma dessas rebeldias de adolescente, nem percebera bem qual porque o desacato era o seu modo natural de ser. Não comentes, nem com a tua mãe, senão a minha dobra a carga. Mas ele comentou, e um dedo nos lábios foi o sinal para que eu não repetisse em voz alta o que acabara de ouvir. Fiquei-me de noite às voltas na cama, nem a leitura me desatou os grilhões ao pensamento. Quantas vezes o miúdo comeu e dormiu lá em casa? Quantos abraços me deu? A gente afeiçoa-se. Mãe de um é mãe do mundo, vê em todos o filho que podia ser tido, rala-se com as dores de crescimento alheias, contrai-se do ventre que pariu o universo torto, imperfeito, aleijão.
Depois, então, encontrei-a. A propósito de assunto que não recordo, disse-me aquilo. Que eu sou doutora, ela não passa do pouquinho que estudou, mas somos iguais. Quase a desdigo, porque sinto-me a milhas dela, em mundo paralelo, incapaz da tolerância que aprendi com aqueles que tiveram vida oposta à minha e cortaram nos afetos para amealhar em resistência. Calo-me, olho-a com secura e dou-lhe apenas o que a boa educação impõe.
Acontece que, subitamente, o rapaz aparece e vejo-os unindo-se num abraço feliz, olhos protetores nos olhos aduladores, cumplicidade de mãe e filho sarando todas as feridas, o laço firme que nem a rebeldia desata, o beijo maior que a sova. Do útero até à morte.
São tremendas, misteriosas, - às vezes até um susto - as coisas do amor. E a minha tese sobre o segundo pilar de Maastricht, além de ser um fastio, não me avisou de nada disso. Doutora do caraças.»

4 comentários:

JoanaM disse...

O texto é bonito, mas não me revejo nas palavras. O abraço feliz e olhos protetores não devem estar juntos com porrada. Aliás é por haver cumplicidade e entrega dos filhos que não aceito a porrada. Pela aprendizagem de que ao amor está associada a porrada. Os nossos filhos entregam-se a nós e ao que lhes damos, seja amor, seja sova, seja as duas...

Cipreste disse...

compreendo perfeitamente a chamada de atenção que fazes para essa interpretação, Joana, e concordo, sem nenhum "mas"
da minha parte, o que compreendi como o "somos iguais" é-o de uma forma quase poética no que concerne a nossa condição enquanto humanos com afectos

sim, é preciso ler as coisas muito conscientes de qual o registo em que estamos porquea porrada não tem nada de poético e é um assunto muito sério que não deve ser tomado de forma leve nem leviana

JoanaM disse...

:) é um assunto ao qual eu sou sensível. e sinto sempre que há uma certa leviandade...

Cipreste disse...

compreendo ;)