sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

coragem major ~ coragem minor

Por vezes, sinto-me tão perdida. Tão longe das soluções que passam pela expressão “basta fazer isto ou aquilo” e, pronto, “já está!”. Para além de me sentir perdida, também me chego a sentir mal por  achar que não estou a encontrar no amor a solução para os problemas dos meus filhos. A ideia de que o amor tudo cura é muito linda, mas não encaixa milagrosamente no quotidiano das nossas dores. Quando vemos os nossos dias a seguir rumos dolorosos e amamos, mas não conseguimos que esse amor cure, acabamos a colocar em causa a nossa capacidade de amor. Será que isto é amor? É que, repare-se, se o amor tudo cura e eu não estou a curar ninguém, então isto não deve ser amor.

É. É do camandro.

Uma pessoa lê estas afirmações: “A ideia da não vinculação é monstruosa para a espécie humana” e que “para desenvolver-se bem, toda a criança precisa que alguém esteja louca por ela”(aqui). E fica a questionar o seu amor. Será que amo mal? Será que não lhes mostro que sou louca por eles? Num instante, estamos a pensar, oh, não, estou a fazer mal aos meus filhos. Eles portam-se assim porque se sentem mal-amados e eu sou a pior mãe do mundo.

É. Tenho dias assim. Depois eles sorriem e abraçam-se a mim e acontece uma palhaçada qualquer e sobrevivo novamente a mim.

~ ~ ~

Ultimamente, comecei a reler alguns dos meus posts pré-filhos e tenho tido felizes encontros. Nem sequer posso dizer que tenho engolido muitas das minhas palavras ;) afinal, a maternidade não me veio mostrar assim tanta incoerência. Na verdade, e já que estamos a falar das diferenças antes-depois, posso declarar que a grande diferença é a forma como encaro as opiniões alheias. Antigamente, avançava com a minha opinião, mas restava uma dúvida pesada sobre a opinião alheia, agora, embora reste sempre uma dúvida – que considero a dúvida razoável, senão seria uma tola cheia de certezas, avanço de forma firme.
Uma pessoa que não se munisse deste mecanismo nunca poderia sobreviver no dias em que pensa que ama mal e recebe simultaneamente opiniões alheias destrutivas.

Adiante. Ao reler os posts, tenho encontrado um ou outro excerto muito certeiros. Sobre os últimos tempos por cá, este que já partilhei ontem:

“Compreender quem somos é um processo difícil – mesmo quando temos histórias familiares intactas, longa e discriminadamente detalhadas. Quando não temos nada disso, compreender quem somos é muito mais difícil. Não admira que não se queira falar do assunto o tempo todo. É uma tarefa árdua. É um trabalho doloroso. Mas não devemos concluir que o assunto não interessa só porque ela não fala dele. Ela está a tentar perceber quem é, mesmo que não fale disso todos os dias. ”(aqui)

Adoptar crianças “mais velhas” tem a benesse de encontrarmos pessoas que já conseguem elaborar sobre as suas emoções. Se o fazem são outros quinhentos, pelo menos já têm a bagagem neuropsicológica para tal.
Assim são os meus filhos: com competências para elaborar sobre as suas emoções. E o mais lindo é que gostam de o fazer.

Há dias, a nossa assistente social, em resposta ao nosso email periódico em que enviamos notícias com fotografias, respondeu “os vossos filhos estão lindos e cheios de competências”.

Ena! Pensei… os meus filhos… cheios de competências. Uau, isto soou-me bem, muito bem, tão bem. Uma mãe precisa de ouvir estas coisas.

E é mesmo verdade que estão cheios de competências.

Como todas as mães, antes de o ser, sonhei muito com o que gostaria de fazer com os meus filhos. Sonhei com a música que aprenderiam, que ouviríamos, os concertos a que iríamos. Sonhei com a partilha que faríamos com eles dos nossos passatempos. Os nossos passatempos, meus e do Chaparro, passam maioritariamente pela área das artes. Apreciamos muito o conciliar das artes à natureza, praia, bosque, etc. Assim, damos uns toques na fotografia, escrita, instalação, leituras públicas, e participamos na organização de eventos relacionados.
Várias vezes por semana, os meninos fazem actuações para nós que passam pelo teatro e pela música. Agora começaram a compor! É mesmo admirável porque nenhum de nós lhes deu alguma vez tal ideia. Levamo-los a ateliers de ilustração, teatro, música, etc. Vamos a concertos, às vezes, várias vezes por semana, pois na escola da Magnólia são muito activos e são quase sempre de entrada livre. E eles adoram. Vibram. Desde a música clássica ao jazz. E sabem estar numa sala de espectáculos. Vêm para casa e mimetizam tudo. O Chaparrito é especialmente delicioso a imitar músicos e maestro.

Posso dizer que os nossos filhos abraçaram incondicionalmente o nosso amor pelas artes e tiram verdadeiro prazer delas.

Depois, há dias inteiros em que a televisão não é ligada. Obviamente que é por princípio nosso, como o hábito é que faz o monge, quando éramos só nós dois já havia este registo cá me casa. Liga-se quando é para se ver algum programa em específico. Se já fizeram os tpc, se já se estudou instrumento, se a mesa está posta para o jantar, ok, vemos um pouco do zigzag (depois há também o pormenor de que não temos tv-cabo). Com sorte, apanhamos o ioga que eles adoram fazer.

Ainda mantemos os nossos filhos ignorantes quanto às outras tecnologias – smartphone, tablet, computador. Vêem nos nossos, connosco, e não jogam. Não tenho qualquer dor de consciência em relação a isto e sei que rapidamente apanharão o comboio quando começarem. Além disso andam aí umas manchetes nos jornais a falar dos perigos da utilização destes dispositivos antes dos 12 anos – right on! Estamos dentro do prazo.

Não tenho pressa para estar a falar com os meus filhos e ter como reacção o silêncio acompanhado de uma expressão de dormência deles perante um écran. Aliás, eles sabem que se não nos respondem a chamamentos enquanto vêem televisão que esta é desligada imediatamente.
Somos muito maus, muito intransigentes. Já sabemos.

Portanto, juntando este não desperdiçar tempo frente a écrans à tal resposta positiva que eles têm aos estímulos artísticos, é um corrupio de espectáculos em nossa casa.

Há duas semanas, fomos a Serralves porque tinha de ver a exposição da Helena Almeida (acabava nesse fim-de-semana). A Magnólia foi simplesmente maravilhosa. Interpretou as séries dela de forma deslumbrante. Usou espontaneamente as palavras “luto”, “ferida”, “belo”. As pessoas que passavam por mim deviam ficar ofuscadas com o brilho que saía dos meus olhos.
Fizemos fotografias interpretativas das obras frente a elas, assumindo posições muito engraçadas. Frente ao “abraço” fizemos uma fotografia com os quatro abraçados. Acho que a determinada altura andava uma pessoa a perseguir-nos e ficou felicíssima por poder tirar-nos essa foto.

A semana passada, a Magnólia "enviou-nos" um convite para uma exposição que montou no corredor. Deviam ver. Ok, depois fotografo para verem, como ainda está patente, posso voltar lá. Chama-se "sentimentos" e está dividida em várias ilustrações com placas identificativas - incluindo nome da autora e ano de nascimento (tão sweet :) ). O nome das obras passa pela designação "etapa" que se segue pela ordem com números romanos e depois a explicação de tipo "se pensas que não sabes dançar, põe música e começa a mexer-te, vais ver que sabes dançar". Ficámos de queixo caído.

Isto tudo para dizer que tenho andado a rondar uma certas e determinadas questões junto da Magnólia e comecei a usar estas competências. Afinal, a arte serve para quê?

Não se esqueçam de que estou a falar disto: “Compreender quem somos é um processo difícil – mesmo quando temos histórias familiares intactas, longa e discriminadamente detalhadas. Quando não temos nada disso, compreender quem somos é muito mais difícil. Não admira que não se queira falar do assunto o tempo todo. É uma tarefa árdua. É um trabalho doloroso. Mas não devemos concluir que o assunto não interessa só porque ela não fala dele. Ela está a tentar perceber quem é, mesmo que não fale disso todos os dias. ”(aqui)

Esta semana, aconteceu algo extraordinário: a Magnólia contou-me pormenores da sua vida anterior que não constam dos relatórios oficiais. Estou a falar de factos que vão além de relatos do quotidiano.
Digo-vos que isto não é nada fácil.

A Magnólia gosta muito de usar a expressão “pozinhos mágicos”.
Eu disse-lhe que, se eu pudesse ter os pozinhos mágicos, utilizá-los-ia para que ela nunca tivesse tido de viver estas coisas. Ordenaria que ela tivesse sido sempre feliz desde o seu primeiro minuto, que nunca tivesse tido que ser “retirada” e que ainda hoje fosse muito feliz com as pessoas do seu passado, mesmo que o preço fosse viver a minha vida sem ela. Fiz questão que compreendesse que não estava a dizer que abdicaria dela. Ela compreendeu, acenou a cabeça à medida que as lágrimas lhe corriam pela face. As minhas já corriam há uns segundos.

Fizemos um acordo, propus-lhe um novo exercício. Uma nova tentativa para ver se conseguimos transformar um comportamento que ela tem e que a prejudica. Aceitou. Estamos agora neste novo tempo. Estou cautelosa. Já falhámos tantas vezes. Mas sinto cada vez mais a solidez disto tudo.



A adopção é uma coisa violentíssima. Para todas as partes. E não há texto ou palavra amiga que nos consiga fazer vislumbrar o quão violento pode ser tudo isto. Desde o amor ao aceitar a instalação de dores novas e permanentes.

É precisa coragem, sim senhora. Vejo muitos pais adoptivos dizer que se sentem ofendidos quando alguém lhes gaba a coragem. Compreendo ao que se referem: a coragem das crianças é ainda maior do que a nossa. Mas esta não deixa de ser também uma coragem.

Se as queremos distinguir, chamemos-lhe coragem major e coragem minor, então.

Sim, a coragem dos nossos filhos é major

Caramba, imaginem-se: ok, achámos que aquelas pessoas não sabiam amar-te e cuidar-te devidamente, trouxemos-te para esta casa e agora que te sentes seguro aqui vais embora e viver com estes senhores, que não conheces de lado nenhum, mas a quem vais chamar de pai e mãe, e que têm mil sonhos e expectativas para o que querem que tu sejas enquanto filho deles.

É isto que acontece. Por mais conscienciosos que tentemos ser, vamos também com a nossa bagagem de expectativas. 
E deve ser mesmo muito brutalmente assustador para uma criança e, sim, a coragem deles é maior do que a nossa.

Nem por isso, a nossa deixa de o ser. Eu, que sempre achei que encarava as emoções de frente (hahaha) e que sempre gostei de dar nome às coisas para procurar compreendê-las, tenho levado com cada safanão emocional que até fico a ver estrelas.
Enfrentar as dores dos nossos filhos é coragem, sim. É uma bela coragem e a minha vida é bela acima de tudo por causa da coragem que os meus filhos necessitam de mim. Não estamos curados da vida, nunca estaremos, mas caminhamos juntos e com coragem para o que der e vier.


Deixo-vos com um excerto a que volto muito.

«Deitei-me no chão, e não é fácil. É preciso ter sido queimado por muitos nomes, ter esquecido e relembrado a delicadeza, o sangue, a ironia, paisagens e transmutações, as formas, as vozes. Como se pudéssemos existir sem qualquer herança, com a fortuna apenas de um tesouro criado pela solidão. Deitado na terra, respiro contra o chão vivo; e como estou com a cara muito junto ao chão, o sopro bate na terra e volta-me à cara. É ainda assim uma bela coragem.»
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Herberto Helder in Photomaton & Vox


Cipreste



3 comentários:

JoanaM disse...

Queria escrever qualquer coisa, embora este post me sugira mais conversa do que escrita... Os teus filhos parecem maravilhosos, quando descritos pelos teus olhos! Não me revejo nessa coisa da coragem. Ou pelo menos assim descrita. Acho que é apenas a coragem que precisamos para muitas coisas na nossa vida. é sempre precisa uma certa dose de coragem para existir :) felizmente, a perfeição não existe! Beijinhos

Unknown disse...

Queria ter tempo para escrever algo mais do que aquilo que aqui vou escrever...
Sei o que estão a passar.
As feridas antigas vão cicatrizando, mas nunca desaparecem.
Cada dia é um novo dia. Uns dias avançamos noutros andamos para trás... e noutros não saímos do sítio...
Ser mãe é ser corajosa tendo medo.
Beijinhos :)

Cipreste disse...

é como disse a Olívia, ser mãe é ser corajosa, é, de facto, "a coragem que precisamos para muitas coisas na nossa vida" e "é sempre precisa uma certa dose de coragem para existir"
aqui fala-se de uma coragem específica e ela existe, não acredito em branqueá-la por haver, realmente, uma coragem maior que é a deles :)

hei-de escrever mais sobre isto