quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

dores muito específicas e muito sérias

Ler blogs ou livros de pessoas que foram adoptadas, os seus testemunhos de como viveram (e têm vivido) a condição de pessoa adoptada, tem sido o melhor e mais duro exercício para mim, enquanto a mãe adoptiva.

O meu maior desejo, a minha luta é manter-me sempre com a mente aberta e procurar uma certa clarividência nesta missão de ter as decisões de vida dos meus filhos nas mãos.

O meu maior receio é um dia perceber que de alguma forma os impedi de viver, de sentir a sua existência de forma plena.

Quando os nossos filhos precisam de colar peças do seu passado, não nos estão a rejeitar, estão a tentar sarar e o nosso papel é lamber-lhes as feridas.

Para além da validação das suas narrativas, um caminho que vamos seguindo é este, que verbalizamos junto deles sempre que surge (ou se repete) alguma dúvida:

- Ninguém manda no teu coração. O que tu sentes, só a ti diz respeito e ninguém, ninguém tem o direito de qualificar os teus sentimentos.

E rematamos sempre com:

- Se nos nossos corações cabem três filhos - tu e os teus irmãos, porque é que não pode haver lugar no teu para mais do que um pai ou mais do que uma mãe, por exemplo? Afinal, tu também amas mais do que um irmão, não é?




É preciso sentir as dores, é preciso deixar de enfiar as coisas num buraco escuro. É preciso caminhar lado-a-lado com eles. Se necessário, partir mesmo com eles à procura de respostas.
Já li testemunhos de adultos que foram adoptados em bebés e que descreviam sensações como de "membro fantasma" que relacionavam com a ausência de um (ou ambos) progenitores na sua história. Já li demasiados testemunhos sobre a sensação de se viver em dormência, aparentando ser a pessoa mais de bem com a vida, para fechar deliberadamente os olhos a isto. O suicídio e a automutilação têm números específicos de incidência em adolescentes adoptados (sendo bem certo que não estou a falar de números de Portugal, que nem sei se existem).

Não escrevo isto porque esteja alarmada (senão não o escrevia) nem para assustar ninguém, é apenas um resumo-muito-resumido do que sinto quando leio adultos ou adolescentes relatar a dor de lhes ter sido privado viver a sua narrativa completa em detrimento de terem de viver o sonho dos seus pais adoptivos.

É preciso abrir os braços a tudo o que os nossos filhos são, a toda a história que trazem consigo.
Quando nos propomos adoptar, temos de ter o coração aberto para a entrada nas nossas vidas não só dos nossos filhos, mas de todos a quem amam e cujo bem estar é necessário ao seu.

Não, a parentalidade na adopção, não é igual à parentalidade na biologia.

Cipreste

p.s. deixo este link - Lost Daughters, apenas como um ponto de partida para quem esteja interessado na temática; conheço outros lugares, com outras perspectivas, mas as dores são "as mesmas"

4 comentários:

Ana disse...

E é importante falar nisto. Porque esses números são reais e não melhoram quando tentamos começar do zero e fazer passar esponjas em histórias e sentimentos que já existiam e que permanecem para sempre, como se as dores pudessem desaparecer dessa forma.
Ainda bem que não tentas fazer esquecer. Os teus filhos agradecem :)

Cipreste disse...

é mesmo um problema
embora as equipas alertem muito para iesto, para as "mochilas" que eles trazem consigo, ainda há quem queira tapar o sol com a peneira, quem pense que pode fazer dos filhos "tabula rasa" :( no fim, sofrem TODOS mais

JoanaM disse...

É verdade, muito importante! Ainda bem que fazes esse trabalho. Espero conseguir fazê-lo também. Bjs

Cipreste disse...

Para nós é mais fácil, Joana, porque as memórias estão lá, é só não as ignorar, não as inibir, não as proibir
Na verdade, este trabalho não é difícil para nós, tem apenas como característica a repetição, ou seja, temos de repetir esta validação de sentimentos de tempos a tempos
vou percebendo que, à medida que se fortalece a vinculação, eles (em momentos de lembrança e saudade) vão retomando a sensação de "pecado" por esses sentimentos... e nós voltamos a validar ;)

para ti será certamente muito diferente, devido à particularidade da idade